A PARTIDA

"Monolítica", disse-me certa vez um amigo, quando nós ambos éramos ainda muito jovens. "Uma mulher de tragédia grega na velhice" - assim selou ele a minha fotografia do futuro. Melodramática, retórica, rio falante a inundar todas as margens - "Você fala, fala, mas não faz nada", diz o papagaio, em romance do escritor francês Queneau. Pobre papagaio, ele só aprendeu a dizer isso e eu digo a mim mesma que me queria ir embora, mesmo com este excesso de bagagem e alguma esperança de ainda conseguir pagar, nesta vida, ao menos parte do amontoado de dívidas com a família, financeiras, profissionais, amorosas, metafísicas, metamórficas. As dívidas da lealdade. As dívidas da piedade e da auto piedade inúteis. A esperança, mínima, de ainda poder vir a ter algum saldo credor.

Ah, pudera partir! Partir. Partir. Partir. Deixar tudo e todos. Levar comigo, se possível, e não é mais possível, os meninos, de futuras e distantes salas de aula. Os meninos, ainda inocentes apesar de muitos de seus atos já de adultos prematuros e amargos. Permanecer com eles, quando tal já não é possível, onde quer que eu esteja, onde quer que eu procure, desesperadamente, manter a esperança viva, nesta partida desejada, da mais acerba solidão. Levá-los comigo, agora só lembrança, levá-los, aos meus alunos, a lembrança menos dolorida de todas as lembranças só feitas de dor.

Partir, não como teria partido há vinte e tantos antiquíssimos anos quando a alma, que se julgava tão vivida era, em verdade, ainda quase virgem; com a alma que carregava ainda a presunção de saber, de verdade, alguma coisa. Partir, partir agora, vinte e tantos anos depois. Partir com este cansaço de tantos mundos perdidos nos países de fora e dentro, com este cansaço onde não cabe mais lágrima alguma nem mais ninguém, absolutamente Ninguém a quem culpar.

Texto de 2008, republicado na noite de 25 de agosto de 2011, com alguns acréscimos e alterações.