Como se forja um homem.
Levei as mãos acima dos olhos protegendo-os da luz forte do sol do meio dia. Sentia nas narinas o mormaço da terra árida e quente onde tudo sucumbia mais depressa. Ao longe via-se pairando no céu, uma nuvem negra girando em círculos mirando a terra. Eu que nunca havia visto nada parecido já havia formulado milhões de perguntas, mas o medo da resposta me fez calar. Então por um curto espaço de tempo contemplei aquele desmantelo suave, numa dança quase hipnótica até meus olhos arderem e eu não conseguir mais olhar. Mirei o chão. Esfreguei os olhos fortemente até escurecer as vistas e foram se formando todas aquelas figuras que também giram em um caleidoscópio. Eu gostava desta sensação, e quando a visão voltou a ser o que era antes, percebi que o sol havia sido encoberto por uma grande nuvem, e o redemoinho negro que pairava La no céu parecia estar cada vez maior. Senti um frio na barriga, curiosidade ou medo, ou mesmo fome.
Continuamos andando, ele na frente e eu atrasado em alguns passos. Ele trazia junto ao corpo a velha espingarda que quase sempre o deixava na mão, levava também uma bolsa de couro onde guardava água e que estava vazia. Caminhávamos rumo à nuvem, onde eu não tinha bem a certeza de ser um lugar seguro nem se era mesmo onde eu queria estar. Apressei o passo e caminhava agora quase ao seu lado. Tomei coragem e perguntei a ele:
- O que é aquilo?
Como se houvesse perguntado ao vento, o silencio foi sua resposta.
Melhor não perturbá-lo. Muito menos incitar sua fúria. Andei mais algum tempo ao seu lado até pararmos a sombra de um juazeiro. Naquele cenário quase de deserto, não fosse pela floresta de galhos secos que acompanhavam o caminho, aquele era o unico ponto verde que se podia avistar.
Ao sentar-se em uma pedra aos pés do juazeiro ele olhou-me nos olhos. Não era de cansaço o seu semblante. Se não o conhecesse bem, poderia até pensar ter visto em seu rosto alguma coisa próxima da alegria. Um cheiro de coisa podre tomou conta do ar.
Ele carregou a velha espingarda, e buscou um gole de água em seu cantil. Esticando a língua e balançando a pequena bolsa na esperança de caírem algumas gotas, percebeu que seu esforço era em vão e atirou longe o objeto.
Ávido e impaciente, começou a arrancar folhas de juá e enfiá-las em seus bolsos ordenando-me a fazer o mesmo. As folhas eram para mastigar e achar nelas algo que fosse liquido, de modo que com certeza também serviria como distração para nossos pequenos estômagos vazios.
O calor era insuportável. Meus pés rachados como os de um homem adulto já estavam acostumados a pisar naquela areia escaldante, mas a sede... a sede era um tormento por vezes pior até do que a fome. Sentia-me fraco e por mais de uma ocasião pensei em parar no meio do caminho, mas eu não podia. Sempre o ouvi dizer que um homem de verdade é forjado no calor escaldante e na martelada constante. Apesar de não ser ele um homem de muitas palavras, as poucas que ousava pronunciar vinham sempre carregadas de muita sabedoria e alguma dor.
Apenas uma vez, me lembro de tê-lo visto fraquejar. Certa noite quando ele ainda estava doente e delirava de febre no fundo de uma rede, e eu de guarda em sua cabeceira. Em meio a delírios ouvi ele sussurrar baixinho o quanto estava cansado desta vida. Disse que a vida não vale nada e se perguntava por que agente vem pra esse mundo pra sofrer. - Viver não vale apena! Ainda disse que um dia iria acabar cansando de tudo isso e que, no meio da madrugada acabaria pondo fogo na casa com todos dentro, inclusive ele mesmo. Depois daquele dia, aprendi a armar minha rede sempre na varanda.
Eu via aquele homem magro caminhando a minha frente e sentia compaixão. Agora bem próximos ao nosso destino eu podia distinguir bem do que se formava aquela nuvem.
Apesar da pouca idade, nenhuma instrução e sem saber que nome dar, conseguia entender o que estava se passando. Vi dezenas de enormes pássaros negros, disputando a carcaça do que deveria ser uma vaca e seu bezerro e que provavelmente haviam morrido de sede e de fome.
Paralisei como uma estatua em meio a caatinga. Nunca antes havia visto algo morto, muito menos naquele estado de putrefação. Me sentia enjoado. Não sei se pelo cansaço, pela fome e sede ou ainda, se por causa daquele cheiro insuportável que se propagava com o bater de azas daqueles animais. Comecei a imaginar eu também comendo aquela carne e vomitei as folhas do juazeiro.
Ouvi um tiro depois outro. Enquanto recarregava a arma ele olhou pra mim e balançou a cabeça em negativa. Mais um tiro e depois outro. Os urubus estavam se dispersando. Eu de joelhos na terra quente, imaginando se iríamos comer aquela carne fedorenta. Vi quando ele se aproximou de mim. Trazia uma enorme ave em cada uma das mãos. No semblante nem alegria nem tristeza, apenas certeza de que fez o que deveria ser feito.
Há sim quem se alimente do que a morte traz. Para alguns, uma nuvem de urubus ao longe antecipando o cheiro da carniça, é a noticia da ‘’boa nova’’. No mundo em que crescemos, qualquer coisa que se mova é um alvo. Sobreviver é a lei. E viver? Viver é estar doente por muito tempo.