Outros agostos
Dia 24 de Agosto de 1954. O presidente do Brasil, Getúlio Vargas, se suicida. Fato inédito na nossa história, um presidente se suicidar. Já tivemos atentados, mas suicídios não.
Por que Vargas atirou contra o próprio peito? A resposta pode estar bem no fim de sua carta-testamento: "saio da vida para entrar na História".
Realmente, depois do que fez poucos esqueceriam isso. Seus vários admiradores, sejam eles funcionários públicos que reconheciam sua astúcia ou trabalhadores que viam nele o "pai dos pobres", nunca se esqueceram daquele dia.
Quando souberam da notícia, desconfiaram: "Mataram o velho! Mataram ele!" Muitos gritaram. A fachada do jornal A Tribuna foi depredada; Carlos Lacerda não pode sair de casa com medo da turbe furiosa que o esperava do lado de fora com pedras e paus na mão.
Dois dias antes, Vargas estava, como se dizia nos jornais, "num mar de lama". A UDN (União Democrática Nacional) fazia ferrenha oposição ao seu governo, temendo que ele fizesse um golpe novamente como fizera em 1937 instaurando uma ditadura. O seu maior porta-voz era o jornalista Carlos Lacerda. Denúncias de corrupção eram publicadas no jornal A Tribuna todo dia. Lacerda discursava nos rádios atacando Vargas e sua corte de amigos. A situação piorou quando atiradores tentaram matar Lacerda. O jornalista não foi morto, mas seu amigo Rubem Vaz sim. Vaz era major da Aeronáutica e estava fazendo a segurança de Lacerda.
Logicamente, quem mais se beneficiaria com a morte do "Corvo" (apelido dado pelo jornalista Samuel Wainer á Lacerda) seria Getúlio. A investigação sobre o Atentado da Rua Toneleros (local onde Lacerda morava) foi feita em grande medida pela Aeronáutica no Base Áerea do Galeão. Os atiradores foram encontrados pela polícia e interrogados. Confessaram que o mandante do crime era Gregório Fortunato, segurança pessoal de Vargas e seu amigo íntimo. Era o bastante para se pedir a renúncia do presidente. Era o que exigia a UDN e as Forças Armadas.
O Exército já desconfiava das intenções do "velhinho" assim que concorreu á presidente em 1951. Na realidade, as Forças Armadas, que acabaram com sua ditadura em 1945, estavam divididas: uma parte estava convencida que a melhor maneira de salvar o país era pedindo ajuda ao capital externo, enquanto a outra era mais protecionista. Vargas voltou com um discurso nacionalista atraindo não só esse setor das Forças Armadas como também comunistas.
Falava-se em lutar contra os trustes, as grandes empresas que pretendiam explorar os recursos e a mão de obra do Brasil. Esse era um dos pontos fortes de seu discurso, junto com a defesa do trabalhador. Os primeiros de maio se tornaram épicos: os estádios de futebol ficavam lotados de trabalhadores que assistiam, primeiro, a desfiles e depois eram premiados com as palavras do presidente.
As denúncias abalaram sua imagem. Vargas era um homem muito maquiavélico no sentido real da palavra: se considerava acima do bem e do mal e que os fins justificam os meios. Fortemente influenciado pelo positivismo de sua terra natal, o Rio Grande do Sul, achava que sua missão era salvar o Brasil da situação que ele se encontrava antes, na República Velha: descentralizado, subdesenvolvido, etc. Já tinha ficado no poder por 15 anos antes e não achava que tinha conseguido finalizar sua missão. Na realidade, é bem possível que tivesse se encantado pelo poder também.
Precisava, portanto, sair dessa crise. Não conseguiria sem o apoio do povo e das Forças Armadas. Contudo, a opinião pública já desconfiava dele por conta do atentado e as Forças Armadas estavam divididas. Suicidar-se foi uma maneira de fugir da crise, mas também uma forma de reverter ela. Na carta-testamento dizia que "forças" impediam ele de governar e o Brasil de ser um país grande um dia. Era uma menção aos seus inimigos políticos. Queria dizer que eles não lhe deram outra saída. Com isso não foi só um homem que morreu, mas um Brasil melhor. A carta-testamento de Vargas é, portanto, também um discurso. Um de seus mais inflamados e mais eficientes. Basta nos lembrarmos do quebra-quebra que ocorreu no dia seguinte quando todos souberam da notícia.
Vargas saia, assim, vitorioso. Assim como todos que apoiava. Pesava sobre o quase desconhecido Juscelino Kubistchek a imagem de ter sido amigo do "pai dos pobres". Em Jango Goulart mais ainda: era amigo íntimo de Getúlio e tinha sido seu ministro do Trabalho. Aliás, por ter concedido um aumento de 100% nos salários quando era ministro provocou a ira dos opositores de Vargas que viram nisso demagogia pura. Goulart seria lembrado, no entanto, como mais próximo dos comunistas que de Vargas por conta de sua passagem conturbada pela presidência em 1963. Goulart acabou tendo seu mandato interrompido pelo golpe de 1964, quando um grupo de militares tomou o poder com o apoio da UDN.
Forças Armadas e UDN. Os mesmos personagens que pressionaram a deposição de Vargas se encontrariam novamente em 1964. Muitos acreditam que 1954 foi um ensaio do que seria em 1964. Vale a pena lembrar que nas eleições de 1954 Juscelino foi vitorioso, mas a UDN e alguns setores militares tinham medo de que um dos "herdeiros de Vargas" assume a presidência. Tentaram impedir sua posse por meio de um golpe que não foi realizado graças ás ações de um grupo de militares liderado pelo Marechal Henrique Lott que consideravam esse ato institucional e anti-nacionalista.
Vargas, mesmo morto, tinha dado muito o que falar. Vitórias eleitorais, golpes, contragolpes, etc. Aquele tiro que ceifou a vida de um homem determinou o rumo de uma década (ou décadas).