Os melhores amigos da melhor das infâncias
Fui uma criança especialmente feliz: vivi entre gente decente, riacho de mato e de água, e bichos. Muito me espanta eu não ter, nos dias de hoje, apego a plantas e animais (digo apego de não criar nem manter), mas ainda cultivo gente boa, talvez o mais difícil entre os três.
Cícero Adriano e Maria Bela eram vizinhos da fazenda onde vivi até os oito anos; vivíamos numa comunidade pequena, familiar, com moradias esparsas, resquícios da tradição nordestina – desinteligente o bastante para não apostar no modelo tupiniquim.
A casa de meus amigos situava-se na metade de uma colina, após uma estrada indefectível, um riacho de inverno e uma cacimba de verão; por trás, outra colina, mais alta. Era cheia de coisa antiga e útil e na cozinha sempre havia café torrado e moído, coado na hora (o vício começou cedo), um cachorro caçador e uma espingarda competente, cavalos de pau, bonecas de pano e retalhos para suas roupinhas – junto com agulha e linha, que serviam também para consertar braço, perna e (hoje eu sei) coração partido.
Cícero fazia os cavalos de talo de carnaúba e cavava a cacimba no leito seco do riacho, aí a água surgia, friinha, friinha, transparente e amiga; a cacimba era festejada por todos e frequentada da mesma forma. Ele também criava cantadores de gaiola. Eu tinha dó dos queridinhos e uma vez abri a portinhola, como quem não quer nada. A tristeza dele foi tão medonha!... Aprendi cedo que tristeza é falta concreta e presença vazia.
O dedal de costura de Maria, que eu nunca me acostumei a usar, era de ferro e havia sido de sua avó. Invariavelmente Maria tinha um cordeirinho órfão para cuidar; muitas vezes a vi dando mamadeira a algum enjeitado pela mãe. (Eu me sentia assim, sem nem saber e juro: não conhecia a musiquinha.) Outra qualidade rara eram os cafunés, que eu pedia para me ensinar, mas só recebia um sorriso lento, que reconheci muito tempo depois nas reproduções de Monalisa. Somente a raiva dela era rápida, e Cícero sofria as penas de todas as aves, se elas se soltavam do galinheiro.
O riacho foi caso especial: tentei explorá-lo, mas nunca passei da segunda curva. No verão ficava cheio de mato; no inverno – se acaso havia inverno – a água abria caminho pelo mato, o mato recuava às ribanceiras, os bichos – um punhado de cobras, rãs, girinos – pululavam entre margem e fluxo; de rã e cobra eu me pelava de medo, mas teria ido com Cícero, na vez em que ele foi até o início de tudo – se ele tivesse me chamado - e se eu já fosse gente nascida.
Para aquele tempo, minha casa era moderna: Pai tinha mania de conforto, então, no começo dos anos 70, tínhamos uma geladeira a gás, o que fazia frios os líquidos, conservadas as comidas (canjica de dias faz mal, de verdade) e (mais importante) com que pudéssemos levar dindin para o jogo de futebol aos domingos. Não satisfeito, instalou energia elétrica através de gerador a óleo diesel, que funcionava das seis horas da tarde até nove da noite. Num raio de dez quilômetros éramos os únicos manter guardadas as lamparinas a querosene e a possuir televisão (o que ainda não era desgraça). Assim, assisti a primeira versão de ‘Mulheres de Areia’ e só perdia o programa do Flávio Cavalcante se a meninada vinha brincar de chicote queimado.
As estórias que eu ouvia dos dois me espantavam; estórias que Maria e Cícero ouviam de mim os consolavam. Os vários filhos que haviam posto no mundo estavam justo aí, no mundo, e eles os viam com pouca frequência. Eu mesma só ‘juntei’ todos uma vez, na festa de Bodas de Diamante do casal, em que, pelo inusitado tempo de vida em comum e pelo cerimonial, os filhos tiveram vez e uns políticos tiveram voz.
Com Cícero e Maria Bela gostei de Dalva de Oliveira, Chico Alves, Nubia Lafayete, Elisete Cardoso... Eles se deram uma filha, Zeneida, que, por haver namorado meu pai muito antes de minha mãe, acha-se no direito de ser minha tia postiça – muito justo, já que eu tinha seus pais como avôs ‘tortos’. Até o marido dela, pessoa do bem, aderiu e virou tio!
Vô Ciço e Vó Bela há muito partiram. O dedal de ferro é perdido; a cacimba se foi quando o riacho virou açude: a necessidade de água perene – para homens, animais e plantações – elevou a subjetiva meninice a patamar comum, social. Agora, do alpendre da antiga casa vejo o espelho d’água, que não mitiga a curiosidade dos meandros do riacho nem da gentileza do fio aquoso que saía friinho, friinho, bem de dentro da terra, a mesma em que estão os dois, desfazendo-se em memória.
Cultivar gente boa pode ser difícil. Por vezes, é necessário muita alegria e confiança – e guardo certeza de que água também ajuda.