Pai-velho, meu avô
 



                               Confesso que tinha inveja do meu primo Almir. Mas nunca revelei essa inveja e hoje estou aqui com meus amigos leitores para fazer, talvez,  esse ato de contrição.
                               Desabafar é muito bom. Um ar puro penetra em nossa alma. É revigorante e ficamos, novamente,  de cara limpa, com moral para continuar enfrentando as tempestades da vida. Ficamos mais fortes. Parece até  que pego, de repente, a fortaleza do Pai-velho, meu avô.
                               Os amigos já devem estar se perguntando: - que inveja é essa do primo Almir?
                               Vou contar!   Um dia, o primo, quando estava lá com seus 10 anos, com   todos  os  seus pertences  em uma pequena mala,  decidiu:  “Vou morar com meu avô”. Saiu, resoluto,  da casa dos pais e só retornou depois de concluído o seu Curso Superior.  O Almir era o primeiro neto e eu apenas o quinto. E,  além disso, meus pais mudaram-se  para o Rio de Janeiro, o que me impediria, definitivamente, de morar com o avô. Mas mesmo assim, a “inveja”  permaneceu.        
                               O motivo era simplesmente o grande carisma do velho. Era um homem encantador, um dos melhores oradores de sua terra. Profundo conhecedor de história universal e uma viva inteligência. Onde ele se encontrava,  formava-se logo uma roda para ouvi-lo.
                               Como todo ser humano, tinha suas idiossincrasias. Na política, depois de apoiar o candidato eleito, praticamente no dia seguinte já era oposição.
                               No tempo dele, moço, por volta de 1900, já fazia caminhadas pelas ruas de Manaus e descalço. Dizia: “ os pés têm que ter contato com a natureza”. Inventou para os filhos uma espécie de sauna. Em uma  cadeira bem alta, coberta por um cobertor, fogareiro embaixo, colocava o filho para suar. Explico: isso foi no tempo da gripe espanhola, em 1918/1919.  Com essa sauna improvisada e muito limão, salvou a família de morte certa.  Essa  pandemia matou muita gente no Rio e São Paulo e andou matando também em Manaus.
                               Não bebia água nas refeições. Do ovo,  só comia a clara. Era um homem muito a frente  de seu tempo. Além de exercer a advocacia, ser professor de Direito Constitucional na Faculdade de Direito do Amazonas, ainda encontrava tempo para dirigir um clube de futebol, o Rio Negro Futebol Clube.
                               A personalidade marcante fez com que ele enfrentasse o seu futuro sogro, um temido Desembargador, em Belém do Pará. Solteiro, frequentava a casa do Juiz, que gostava do  papo do meu avô. Ele ia conversar com o  Juiz, mas de olho em uma de suas filhas.
                               Certa noite, o Desembargador foi taxativo: “Olha, Elviro, está na hora de você pedir em casamento a Mocinha (a filha mais velha, que estava “encalhada”), você pode fazer isso esta noite, dou licença.  – Mas Desembargador, é verdade que tenho conversado todas as noites com suas cinco filhas, porém estou interessado é na caçula, a Maria do Carmo.
                                Foi assim que Maria do Carmo tornou-se minha avó Carminha. Com uma franqueza fora do normal e muita honestidade, meu avô então confessou que tinha um filho natural com uma índia e só  se casaria se minha futura avó aceitasse criar o seu filho. Ela aceitou. Foram para Manaus,  onde tiveram 7 filhos, dois morreram ainda crianças.
                               O Pai-velho tinha uma saúde instável. Seis meses sofria de asma e seis meses de erisipela, como se dizia no tempo dele. Era um estoico, nunca se queixou de sofrimento. Na morte dos filhos, não chorava, mantinha-se firme. Chorava muito por dentro... Amava seus filhos, dentre eles o meu pai Moacyr.
                               Tinha mil qualidades e, possivelmente, uns dois defeitos. Um deles, acho que, depois de tanto tempo,  posso contar  porque não houve propriamente desrespeito à minha avó, o ato dele foi secreto, só meu pai descobriu.
                               Pai-velho, desculpe, mas  vou contar. Acho que agora não tem mais importância. Morreu todo mundo...
                               O velho tinha um “fraco” por portuguesas. Havia muitos portugueses naquela época em Manaus. Pois bem, em frente à casa dele morava  uma portuguesa muito bonita, uma Amália Rodrigues. Já sei, já sei. Os amigos estão perguntando: “o que foi que ele fez?”
                               Simplesmente, fez um orifício na porta de madeira  da casa dele e, tranquilamente, volta e meia dava uma olhadinha pelo buraquinho na bela portuguesa, que secretamente, também, penso eu, já maliciando,   adorava!   
                               Não houve absolutamente infidelidade por parte dele. Ele só queria dar umas olhadinhas, sem ser visto.
                                Era livre-pensador, expressão usada na época. Morreu pobre porque não sabia cobrar dos clientes. Gostava de afirmar que o único bem que fazia questão de deixar para os filhos era a educação.              
                               Segundo meu pai, dos dez netos, eu, modestamente, era o mais parecido com ele,  em termos de temperamento.  Era  a nossa madeira de jacarandá, o   tronco firme  da família. Extremamente corajoso, não sabia o que era medo, característica esta que, infelizmente, não herdei.     Foi o meu ídolo, junto com meu pai. Acho que isto explica porque sempre senti  inveja do Almir  por  não ter vivido na casa do Pai-Velho, nem que fosse por alguns meses.