A Um Palmo do Nariz ( Ou A Entrega)
Descendo a rua da Consolação, ouço alguém gritando: " O fim do mundo está chegando, se arrependa! Não sou eu, é Cristo falando!".
Penso, no que faria se o mundo acabasse agora, resposta: sorriria! Agradeceria a Providência ou ao acaso por ter tido a vida que eu tive, pela minha esposa, minha filha, minha família, meus alunos e amigos.
Sorriria, pois sei que o mundo acaba a cada dia, e nem assim, entramos todos nós em pânico, em fuga inútil, nem desistimos de tudo; pelo contrário, parece haver uma fé velada na vida, na natureza, de que o ontem sempre precederá o amanhã, conosco presente no meio; por isso, nos entregamos ao sono noturno, com uma certeza inabalável que tudo ficará bem, e tudo fica bem.
O mundo acaba todo dia, nesse ciclo lindo de morte e renascimento que está tão a um palmo do nariz que não vemos, mas, acredito, que em algum lugar dentro da gente, parece haver uma chama que nos empurra para frente apesar da nossa teimosia em achar que tudo que é possível é somente aquilo que podemos provar.
Esses dias ao observar a minha filha, notei o quanto entregue ela está para o mundo, para mim e para a minha esposa, nessa arte de criar, de desenvolvê-la para ela se tornar quem quer que ela venha a se tornar. Percebi maravilhado que há uma entrega em seu olhar, na maneira como ela sorri, entrega total e confiança tanta que me deixa um pouco desconcertado, pois confesso, gostaria de ter a mesma entrega em meu caminho espiritual, mas tenho medo.
Medo de ser desapontado, de estar crescendo sozinho, de não ter ninguém lá do outro lado, medo de tudo aquilo que a mente é capaz de aprontar para nos enganar. Taí a razão das minhas barreiras, das armadilhas e das travas que impedem o meu crescimento espiritual.
Sei desses entraves, e ainda assim reclamo que ainda não foi me revelado o que venho tanto buscando.
Sei que preciso me entregar e acreditar mais com o coração, e menos com a mente.
Sei disso tudo, mas também sei que estou tentando; e foi lembrando da minha filha, esse serzinho tão vulnerável, que uma epifania tomou de conta da minha razão e me diluí em coração transbordando um "sei lá o quê" de contato espiritual e por alguns segundos consegui me entregar, sentindo uma espécie de comunhão com tudo ao meu redor em plena Praça Ramos, no centro de São Paulo.
Enquanto a mente alertava ao perigo de ter uma expansão da consciência no meio do centro da cidade, outro lado meu, mais consciente e eterno, dizia para mim: "Não tema! Apenas se entregue!". E o fiz!
Por alguns minutos, percebi que tudo ao meu redor contava uma história, e o mundo de lá, todo o tempo, estava se comunicando com a gente, de uma maneira tão clara e simples, que quase ninguém percebe que esta ocorrendo. E tudo o que eu precisava para continuar a perceber isso, era praticar a "entrega".
Tudo tão claro, tudo tão óbvio, mas é muito simples, é muito na cara para ser verdadeiro, o lógico é duvidar!
Então, a mente triunfou e calei o coração. Tinha que tomar prumo e seguir a minha direção; centro da cidade não é lugar para uma experiência mística de percepção; mas contudo, sentei nas escadas do Teatro Municipal, abri o meu caderninho e comecei a escrever tudinho o que tinha experimentado, incluindo essas últimas palavras, quando...
"Quando... uma velhinha se aproximou pedindo esmolas. Por inpulso, me desviei e disse que eu não tinha nada. Ela insistiu, e mais por querer me livrar dela, do que por caridade, abri a carteira e entreguei todas as moedas que carregava a ela, que sorriu agradecendo:
- Obrigada por esse entrega, meu filho! Ninguém mais abre a carteira e entrega todas as suas moedas. Que Deus lhe entregue também tudo aquilo que você tenha pedido."