UM NOVO TEMPO - CRÔNICAS HISTÓRICAS
Esse livro tem uma tonelada. Meus braços velhos e cansados quase já não suportam o peso de uma enorme responsabilidade, erguendo a voz do povo brasileiro há tempos sufocada e grafada nestas páginas carregadas de emoções, lutas, dores, sangue, suor e muitas palavras proferidas ou caladas nas noites frias do inverno imposto ao Brasil pela ditadura militar. Ainda dei uma olhadinha nesta capa antes de minhas duas mãos erguerem essa conquista, com as cores do nosso país onde o verde esperança sobressai nestas letras que agora inundam o Brasil de uma liberdade sonhada, ardentemente desejada, inaugurando agora um novo tempo de fato para todos os brasileiros. É o grande passo inicial para as conquistas pelas quais tanto lutamos. Este livro erguido e agora mostrado ao Brasil, ao vivo, sob os efusivos aplausos de um povo sonhador é também minha maior conquista. Sei que a gente chora de emoção, mas não consigo derramar lágrimas. Meu sorriso é por demais satisfatório e incontido, para permitir que alguma delas possa cair sobre meu rosto. Sei que a nação me acompanha neste momento e vibra comigo. No entanto, eu também vejo cada rosto de cada homem e mulher desse país que tem nos olhos o brilho da conquista e igualmente celebro com eles.
Esse livro tem o peso de uma história de lutas, erros e acertos. Os aplausos são multiplicados em cada pedacinho deste chão, em que um dia, alguém gritou contra uma injustiça e lutou por alguém num hospital sem atendimento, numa escola em que faltam as condições de educação e num cantinho onde alguém ainda silenciosamente passa fome. Pessoalmente esses significativos segundos da história do Brasil são para mim um verdadeiro acervo de fatos e de lembranças inúmeras em que estivemos juntos ao povo brasileiro. Volto ao meu primeiro discurso debaixo daquela figueira frondosa que nos abrigava do calor do sol do centro do estado de São Paulo, na minha querida Itaqueri da Serra. Foi o início de tudo. Ali ainda jovem proferi minhas primeiras palavras em nome de um povo que agora tenho orgulho de representar como presidente dessa Assembleia Constitucional. Depois do meu querido Santos, a política foi minha paixão. Não abandonei nunca mais a arte de discutir e tentar convencer. Interessar-se por política é interessar-se pela vida e pelos valores sociais, preocupar-se com a justiça e sua aplicabilidade.
Naquele dia eu nasci, no meu discurso debaixo da figueira eu fui batizado pela ideologia política. Até hoje, desde a década de quarenta continuo deputado. Nesta trajetória tão longa, as lágrimas já foram derramadas e hoje restam os sorrisos. E espero que o sorriso seja eterno, duradouro o suficiente para fazer deste país a nação que sempre sonhamos. Ainda vejo em minhas memórias o casarão ao lado da figueira, imponente e aberto com suas quatro portas, deixando amplamente o caminho livre para todos entrarem, tal como este livro abre as portas de um mundo novo, de um Brasil solidário. A constituição cidadã é fruto de portas que nunca se fecharam, apesar das travas e chaves que tentaram prendê-las. Ela é a figueira que nos protege do Sol quente, nos ampara e oferece refrigério nos dias mais agitados. A figueira abriga os homens, mulheres e crianças que ali debaixo brincam e se divertem, conversam e passam momentos agradáveis e felizes. Debaixo da nossa constituição, brinquemos, conversemos e sejamos felizes, igualmente protegidos por sua frondosa sombra.
Ainda tive um relance de apoio aos militares, pensando que era apenas uma solução rápida para impasses. Que engano! Logo percebi o duro golpe contra a democracia, e foi com tristeza que vi tantas lágrimas e esperanças sendo contidas. Candidatei-me como lutador contra os militares e travamos aguerrida batalha. Candidatei-me simbolicamente à presidência do Brasil sabendo que não obteria votos, numa demonstração de nosso descontentamento com os rumos que ofereciam para nossas vidas no auge do governo militar. Quando enfim podíamos concorrer de fato, soube ser sensato e não quis o poder a qualquer preço. Nas nossas negociações, Tancredo, companheiro de batalhas tantas foi o escolhido para inaugurar o Brasil que sonhamos. Tragédias à parte, hoje estamos em festa. Uma festa cívica, litúrgica, celebração nacional da liberdade. Esta constituição que ora ergo acima de minha cabeça, representa a vontade do nosso povo, acima de qualquer pretensão de cada um de nós. Não podemos chorar! É hora de sorrir e aplaudir. Não há um discurso sequer capaz de expressar o que sentimos nesse momento. Vivemos anos duríssimos de repressão e cheguei a ser considerado inimigo, presidindo o Movimento Democrático. Neste caminho, foram muitas histórias e muitas tragédias. Algumas delas estão ainda com as feridas sem cicatrização e outras estão caindo no esquecimento. Cada página deste livro tem um pouco de cada um deles. Essa lei nos oferece a liberdade sonhada, pela qual tantos deram a vida. É o resumo das aspirações de jovens, estudantes e cidadãos amantes da democracia.
Meus braços balançam no ar e proclamam a palavra liberdade com toda a sua força e determinação, com toda plenitude e euforia histórica de sua conquista. Sim, estamos diante da maior conquista de todos os tempos neste país. Por minha cabeça relembro Tiradentes, o grande sonhador desta palavra magnífica, poética, magistral. Em meus olhos revejo os tantos anônimos heróis deste país que igualmente tentaram fazer desta nação uma terra de homens livres, pensantes, atuantes, protagonistas de sua própria história.
Que orgulho para mim, que peso carrego em meus braços já cansados, mas com força ainda suficiente para um brado quase divino de manifestação do milagre maior, que é a paz para nosso povo, a segurança dos seus direitos garantidos a partir de agora. Ergo a Constituição do Brasil, feita pela discussão de nossas gentes, opinião de nossos brasileiros. Pode até não ser o que todos esperavam, mas é o maior passo que esse gigante consegue desde a chegada da frota de Cabral. Enfim, somos senhores de nós mesmos, sem escravos, sem ditadores, sem autoritarismos, sem violência e sem repressão. Cabe a nós todos, a partir de agora, continuar escrevendo esta nossa história, de lutas e conquistas, agora outras. Nossa luta não termina com a proclamação da lei, mas começa com a sua implementação de fato. Aqui está a estrada, resta-nos o caminhar, para que a aurora de novos tempos brilhe neste país, morada de nós todos, para que seja o lar dos milhões de brasileiros que aqui residem. Que vivam em paz, que tenham sua liberdade respeitada, que possam caminhar seu próprio caminho e que possamos todos, enxugar as lágrimas do passado para sorrir o sorriso dos vencedores.
Aqui dentro do Congresso brilha um entusiasmo profético, iluminador, inovador e precursor de uma nova etapa da história do Brasil. Lá fora, milhares saúdam o sol que brilha no céu com sua intensidade máxima, num azul infinito, numa história em que as nuvens carregadas e pesadas de tempestades destruidoras foram afastadas para sempre. Em minhas mãos um livro, nas mãos de todos os brasileiros a história por fazer. Apenas um sou eu, simplesmente todos, lá fora e espalhados por toda esta imensa nação, carregam nas mãos a responsabilidade de continuar seguindo nosso caminho, rumo à justiça social ainda distante de nós, ainda por fazer. Há muito trabalho pela frente, e há ainda em mim muita disposição para contribuir com esse longo caminho.
Fico aqui com vontade de nunca mais baixar os braços, deixá-los erguidos tal qual Moisés diante do Mar Vermelho quando da travessia dos hebreus para a liberdade. Nosso mar vermelho de sangue esta preso na história, afogado nas suas próprias ambições e nadando agora na imensidão do sangue inocente que derramado por esta conquista permanecerá em nossa memória. Deus guarde a cada um de nós e nos conceda a sabedoria para guiar nosso povo rumo à paz tão sonhada. Como cada filho desta terra, eu Ulysses Silveira Guimarães, tenho em minhas mãos o sonho dos milhões de brasileiros, tenho o privilégio e a honra de apresentar ao país o caminho por eles escolhido para trilhar. Saio daqui podendo admirar o céu de Brasília, intenso, forte, aquecendo a multidão que na Esplanada saúdo conosco o tempo novo que ora se inicia. Saio daqui, com pés firmes e mãos seguras para continuar o caminho longo da história a ser construída.
Desço os braços. Minha missão esta cumprida. Entrego ao país a sua lei, fruto de suas escolhas e entrego também a direção desta viagem, cuja condução depende de mim e de você. Façam deste país a nação maior, mais justa, mais solidária. Construam a casa que seus filhos irão habitar. Deixem como herança a paz, a conciliação, a não-violência. Nunca queiram subjugar os outros à sua vontade, e não permitam nunca que alguém o obrigue a fazer o que não deseja. Cultive a liberdade. Ela foi conquistada, mas precisa ser regada dia a dia com tolerância, bom senso, com debates, sorrisos... Deixemos de lado nossas diferenças e sigamos nosso caminho. Erramos? Consertemos. Acertamos? Vibremos. Todos juntos, sempre em frente. Cada um pegue a mão do seu companheiro e nos auxilie nessa viagem, rumo à verdadeira nova república. Nova, e de todos. “Liberdade liberdade, abra as asas sobre nós.”
PS. Esta é a última crônica histórica da sequência. Espero que tenham gostado. Abraços... Breve sairão reunidas em um livro.