I - CAMINHADA ETNOGRÁFICA

Baraçal. Sol ainda bem alto e a fazer suar. Quase todos com garrafa de água na mão e prontos para mais uma das tradicionais Caminhadas ecológicas pelas Terras de Ribacoa. Deram as dezassete e trinta e – vai alas, que se faz tarde! – sabia-se já que, após a Caminhada, haveria lugar a um convívio gastronómico à moda da Terra… Andaria toda a gente à volta de uma centena e pouco, sendo que cerca de metade eram emigrantes que a este tempo passam cá as suas costumeiras férias. – Ena, tanta gente! Dos sete aos setenta, eles e elas, cada um com motivação quanto baste para se fazer ao caminho… mesmo debaixo de tempo quente e alguma poeira. – Levantem os pés, para não fazer pó! Até alguns caninos alinharam na salutar convivência. – Alas, que se faz tarde, ó Reduto, levanta os pés, olha o pó! E todos riam, cantarolavam e entreolhavam-se com ansiedade e espectativa. – Olha que ainda vão ser p’ raí uns sete a oito quilómetros! – E lá nos barrocos nem sequer há caminhos! – Cada um tem de se desenrascar para lá chegarmos! – E parece que vai haver surpresas! Ninguém diz mas, à boca pequena, vai-se falando em caça à raposa, cerco ao javali, etc. O caminho, era de terra batida, umas vezes arenosa, outras empedrada, por vezes com bastante herbáceo à mistura. Mas dava bem para passar um jipe de apoio à malta e outro, mais pequeno – o das Cinco Quinas – filmando o evento para edição breve. Enfim, e o sol teimando em fazer suar. – Parem lá, vem ali o jipe! – Ó Zabel, levais aí água? Já esvaziei a minha garrafa! – Da-me lá outra, que eu não aguento! – Ó Jaquim, abranda aí à frente, o pessoal vem lá muito p’ ra trás! – Ó Maínha, ainda falta muito? – Vois lá, Michelle, coment’ es lá vous? – Oui, bien, bien, mamain! E assim as diversas vozes se iam manifestando ao longo do percurso. Já os famosos barrocos – autênticas jóias da Idade da Pedra – se avistavam no horizonte quando repentinamente surgiram dois abantesmas primitivos, correndo ao largo do caminho e das tapadas gesticulando e grunhindo como se fossem émulos de hominídeos. – Olhem, o que ali vai! – Parece alguém atrás de um javali! – Deixai-os ir, senão ainda temos que nos haver com eles! – Olha como eles levam aqueles chuços, para caçar! – Ó gente, cheguem-se para as bermas do lado direito! Cheira a bicho morto daquele lado. – Ó Luís, segura aí o pessoal. Deve ser raposa morta e já há vários dias! E toda a gente ria destas observações que se iam fazendo em Caminhada estranhamente divertida. – Eia, alto lá, agora é por aqui! Tivemos que atravessar a tapada, por entre palhuça seca, tojos e giestas, que os barrocos eram já ali à frente. De um momento para outro começámos a ver ao longe, por cima dos barrocos mais pequenos, espécie de figuras estranhas, vestidas à maneira de primitivos, a fazer gestos largos e a dar grunhidos estranhos. E quanto mais nos aproximava-mos mais eles iam correndo e saltando de uns barrocos para outros, até que desapareceram por entre os majestosos pedregulhos que lá mais ao alto formavam autênticas muralhas imponentes. – Que grandes barrocos! Toda a gente afirmava que nunca tinha visto coisa assim. De facto, aqueles colossos graníticos – autênticas jóias majestáticas da natureza – impressionavam todos os nossos sentidos. Até nos esquecíamos do cansaço e do calor que, entretanto, pelo cair da tarde, ia já declinando. Mas a surpresa ainda estava para vir. Do interior daqueles colossos – uma espécie de caverna tenebrosa e sombria – começaram a sair os mesmos figurantes que tínhamos visto uns minutos antes, ao longe. Eram mais de uma dúzia. Aos urros, gritos e gestos agressivos procuravam atemorizar-nos para que não nos aproximássemos. Todos eles vestidos bem à primitiva representaram ali, de facto, com todo o empenho e imaginação um autêntico auto tribal. Até o Chefe da tribo apareceu, com voz cavernosa e arrastada dando ordens para os outros. Queria ele dizer talvez que não estivéssemos assustados e, até, foram para nós muito hospitaleiros e generosos. Mostraram-nos a caverna, por entre os barrocos colossais, a qual pelos vistos seria a sua moradia. Para espanto de todos começaram a oferecer garrafas de água fresca a toda a gente. Aos poucos todos aqueles primitivos (muito bem disfarçados!) foram sendo reconhecidos até pela garotada que, entretanto, haviam já perdido o medo. – Olha, o Chefe é o João Janela! – Olha, aquela é a Anita! – Olha a Cândida! – Aquele ali é o Ricardo! E assim toda a tribo acabou por ser reconhecida. Toda a gente se divertiu, tirou fotos, gravaram e tirou a sede, preparando-se para dali a pouco regressar ao Baraçal. – Olhai lá, disse alguém, falta cerca de metade da Caminhada! Temos de ir por esta tapada até lá baixo onde está o caminho fixo! – Vamos a isto, rapaziada! E assim foi. A pequenada foi deixada junto ao jipe de apoio, que os transportaria para o povoado. Uma sábia e costumeira solução que justamente beneficiou os mais frágeis. Todavia, para os outros, o quilómetro seguinte foi um pouco penoso. Descendo-se pela tapada a leste dos barrocos era forçoso ultrapassar tojos, pasto seco, urzes, gestas e até pequenos e rasteiros silvedos. Por vezes era necessário saltar, à maneira dos primitivos que víramos antes. – Ó Tó, afinal também parecemos pitecantropos, eh? – Pois, por esta é que já não esperávamos! – Ó malta, mais para a esquerda, disse alguém. – Por aqui há menos silvas! – Cuidado com os buracos, já falta pouco para o caminho! E era verdade, já estávamos novamente em terreno aberto e sólido. – Não há como realmente! Ainda bem que a miudagem foi no jipe, senão estavam feitos, coitados…Para poente, lá no alto, avistámos novamente Baraçal. Mas ainda foram cerca de dois quilómetros, sempre a subir. Foi um pouco penoso, que a fadiga entrava aos poucos nos corpos suados. Já não havia água e o sol ia-se aos poucos escondendo. Todavia as primeiras casas assomaram por entre os carvalhos acolhedores que nos aguardavam. E, eis-nos de novo chegando ao recinto de Festas do povoado. Já muitos nos esperavam. Não foram à Caminhada mas confraternizaram por ali ao som da música e das cantigas populares, esperando a chegada dos heróis. Que a Caminhada ia-se esgotando aos poucos. Foram chegando, dois a dois, três a três, um a um, cansados mas satisfeitos por chegarem ao fim. Todos demonstraram que quem a cumpriu foi, de facto, herói. E eram dezanove horas e quinze minutos.

- Continua –

FRASSINO MACHADO
Enviado por FRASSINO MACHADO em 22/08/2011
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