Für immer

O café quase caiu sobre o paletó, quando a janela se abriu abruptamente, por causa do vento. E todo o quarto era inundado por aquele cheiro característico da cidade, carregado de fumaça, esgoto, gritos....Finalmente alguma coisa entrava por aquelas paredes, que estiveram ocultando do mundo um coração estranho.

Na calçada abaixo do prédio, passam pessoas cujos rostos são exatamente iguais o tempo todo, e elas todas vão marchando sem rumo, em direção a um abismo florido, criado para engolir o homem mediano. Arte feita pra combinar com padronagens neutras, festas feitas para dopar a mente, amor embalado à vácuo, para acalmar a selvageria.

O que dizer de quem se retirou do mundo, e cuspiu sua dor em códigos?

E os minutos se sucedem como uma avalanche, para levar este coração engaiolado, a um palco, onde o mundo ocorre. E é sob essa luz artificial, como o sorriso de Heitor, que o violinista aguarda uma cortina se abrir, e desvendar o que de mais humilhante o homem criou: o aplauso do desconhecimento.

O pianista, esse elemento torto, tão cruel quanto o espelho, toma então assento ao piano, e encara o violinista que parece pedir socorro, mas só pode sorrir e acreditar que mais uma vez, será a perfeição. E só o som pode justificar o que a insuficiência verbal não ousa.

O vento que fez o café quase cair sobre o paletó, agora circula como um réptil sinuoso pelo palco, tocando a face quase sonolenta do pianista, e desenhando figuras estranhas sobre as mãos do violinista. Ele traz a lembrança dos 6 anos. Ele fala da fome, de tudo o que é esquerdo, do que o espelho se recusou a mostrar. E por isso, ocorre o raro e o inevitável. Vem o choro. Um choro tão insano e verdadeiro, feito do silêncio que existe entre as palavras, devastador como a doença que inverte o sentido. É um choro imperfeito como a fala que nunca houve, ma está lá, enferrujando e destruindo a estrutura dessa máquina de inventar histórias.

E o som cessa-se no mundo. Retiram-se as sombras e o vento, porque nasceu o que há de humano na escrita das coisas.

O pianista entende a verdade por trás de toda a muralha criada por anjos errantes e homens finitos. Por isso a sua mão que é feita para apunhalar as teclas do piano, toca pela primeira vez a verdadeira face. E a verdade assombra. Assombra tanto quanto a divindade escondida nas cordas de um violino que incita ao medo e à eternidade.

São as notas de uma música de seis anos, contidas em pequenos frascos de veneno para aniquilar a natureza.

Natureza que arrasta esses corações tortos, e quase aniquilados pelo peso do concreto, para a hora da iluminação. É o tempo da música comum de dois gêneros. E antes que se desabasse mais uma única gota, todos tomam seus lugares. Porque todos têm seus lugares. O pianista em frente ao teclado, cambaleante. Tão belo quanto o fim das coisas. Tão perfeito quanto o início das coisas. O violinista de pé, rígido como o orgulho das construções feitas nas nuvens, tão apaixonado quanto a poesia da lembrança.

É hora de marchar sobre a terra. É o tempo de silêncio que anuncia o caos. E assim, nasce o que falo, como o vento que envenena minha alma. Essa é a música dos anjos tortos, que se entrelaça em minhas pernas, me impede de ir até a casa de quatro paredes vazadas. Que me atordoa tão tristemente, e me alegra tão desesperadamente. O que César Frank diz, quando suas cordas invadem o coração do piano, é que as mãos precisam sangrar, até que tudo seja reconstruído, nesse mínimo espaço de tempo. E as teclas falam. Falam de amores distantes. De terras desconhecidas, de invenções imperfeitas e dos reis que são sua pátria.

Do ponto de vista do tiro, do projétil arremessado contra o peito, vê-se a divindade brotar dos ossos da guerra. Esse palco nunca foi do piano e do violino. Essa terra tão cinza, essa luz tão indecisa, escondem o que a platéia não vê: o tecido das mãos distantes, criando o império do som. E a beleza, jamais será entendida pela mão que aperta o gatilho.

E é tempo de acabar a música. A lágrima que se arrojou contra o abismo, inexplicada e tão verdadeira quanto ser irmão, congelou sua trajetória quando o piano disse “Eu te amo”. Ao que o violino, ainda ocultando suas notas mais agudas, responde:”Em todas as vidas”.

A luz das estrelas, ilumina muito parcamente as flores de um jardim. Passa o vento. E termina a sonata, de maneira tão febril , que sinto que ambos os instrumentos quase estão mortos.

As sombras da platéia aplaudem algo que aconteceu. Não sabem bem o que. Mas há algo bem maior que palavras embaralhadas e transformadas em esculturas. Há acima de tudo o som lamentoso de uma velhice, uma antiguidade que chega. E que ainda fará mais sangrentas as mãos de quem emite as notas pelo espaço.

Pendendo no teto, como um meio arcanjo, meio malabarista, eu entendo o que Marianne sempre quis me dizer, quando apunhalava o pulso para fugir daqui. Não é a dor, o amor, ou a beleza que matam. É a verdade..

E assim observo os dois seres estranhos de coração sem rumo, saírem da luz. Serão eternos, enquanto existir a finitude, e serão perfeitos, enquanto a dança persistir.

Já tenho, agora, uma religião.