Faz falta...

Aquele velho relógio que meu pai comprara num antiquário acabava de anunciar: dez horas da noite. A estafa parecia pedir para que eu fosse para a cama. No exato momento em que reclinei a cabeça no travesseiro, vi que não conseguiria dormir. O peso e a culpa rondavam minha cabeça. Não deveria ter falado nada daquilo. Ou deveria? Não sei. Não me culpava por ter sido sincera. Mas me culpava por ser tão ciumenta, tão possessiva. Como podia ser assim? Passei grande parte da noite me culpando. Por ter discutido com ele. Por ter dito coisas que poderia ter silenciado. Por ter sido estúpida. Por amá-lo. É, por amá-lo. Foi isso que me levou a brigar, foi amá-lo demais! Não, não podia nem ao menos cogitar uma situação dessas. Mas lá estava eu, apaixonada por ele. Pelo meu amigo, meu grande amigo. E isso eu nunca iria perdoar. Quer dizer, iria perdoar em alguns minutos, pois precisava viver em harmonia comigo mesma. Só não queria. Não queria aceitar essa paixão, não queria que ela tomasse conta de mim.

Ah! A culpa era dele! Eu estava decidida. Já era meia-noite, e eu me embolava entre cobertor e travesseiro. Expulsei a cachorrinha da minha cama inúmeras vezes, deixando-a sedenta de carinho. Não queria ninguém por perto. Queria me entender. Mas como? Havia anos não podia mais acompanhar o que se passava em minha cabeça. Por isso decidi, e sim, a culpa era definitivamente dele. Aqueles "eu te amo" sussurrados em meu ouvido, aquelas propostas de amor eterno, aqueles incansáveis pedidos de ligação, os recados que diziam "Saudades de sua voz.", as palavras de duplo, triplo, quádruplo sentido, as vezes em que ele me dizia que eu eu era especial. Todas as lembranças tomaram conta de mim, e era como se eu estivesse vendo um filme. Só havia uma coisa a fazer. Aceitar, me entregar. Mas eu não podia. Eu o chateei. Eu me senti reduzida à nada quando o vi falando com outra. Senti-me possuída. Senti-me possuidora. Achava que ele me pertencia, e não é bem assim, nunca foi. Briguei sem sequer explicar o porquê. E algum dia poderia explicar? Diversas vezes tive a chance de dizer "Eu gosto de você". Mas eu não disse. Nós éramos muito ligados, e cada "eu te amo" era apenas mais um "eu te amo", um amor fraternal, um amor verdadeiro. Pelo menos pra ele.

Um impulso me fez levantar da cama. Não podia fazer barulho, estavam todos dormindo. Fui devagar até a cozinha. Pensei no que poderia dizer à ele. Café, eu precisava de café. Meu organismo pedia. Enquanto preparava o café, milhares de idéias cercaram meus pensamentos. Um outro impulso me fez pegar o telefone e digitar os primeiros números. Mas não cedi. Desliguei. Uma hora da manhã, o que falaria? E ele ainda estava chateado comigo. Resolvi deixar tudo para o dia seguinte. Não tomei o café, nem ao menos terminei de fazê-lo. Fui ao banheiro, lavei o meu rosto e fui deitar-me - novamente. Desta vez, deixei a cachorra, que já estava na cama me esperando, ficar comigo. A verdade é que eu precisava de carinho. Estava como ela: querendo amor. Entregando-me totalmente sem me importar com quantas vezes fosse jogada fora. Eu sempre voltava, esperando uma nova chance. Entendi a Isabella. Entendi a mim mesma. Eu era aquela cachorrinha, eu era a Isabella. E o meu amigo era eu. Uma hora, quando tivesse de ser, seria. E logo eu estava dormindo. Repousando.

No dia seguinte, fingi não ter acontecido nada. Deixei para ele um recado como os de sempre: "Eu amo você, saudades". Não fiquei esperando ligação, e não estranhei ele não ligar - embora ele ligue todos os dias. Havíamos brigado, era aceitável que ele me evitasse. Passei meu dia, feliz, ignorando o que se passou. Apenas senti falta, mas meu orgulho não me permitiu telefonar. Acho que estou amadurecendo, por mais infantil que eu seja. Estou deixando a vida passar... Quem sabe a reconciliação não vem a ser mais um capítulo dessa minha vida? Quem sabe não exista o capítulo do namoro, ou do casamento? Quem sabe esse não seja o último texto que escrevo?

Do futuro ninguém sabe, decidi aproveitar o tempo presente. Mas que ele faz falta, ah, faz.

Nica
Enviado por Nica em 13/12/2006
Reeditado em 10/08/2008
Código do texto: T317320
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