Amar Deus

Lucas é casado com Sofia, uma jovem alegre e calma, de uma beleza simples, quase feia. (Mas como brilham seus olhos de amor e generosidade! Como é iluminada!).

Lucas é professor de Literatura e escreve uma tese sobre Clarice Lispector. É jovem também, mas tem se descuidado um pouco de seu aspecto ultimamente, o que o faz parecer mais velho e também mais feio do que realmente é. Mas é um bom rapaz, humilde, quase sem ambições, o que faz dele um alvo privilegiado para as cobranças dos parentes, sempre prontos a chamá-lo de preguiçoso quando percebem que ainda não trocou de carro, não viajou para este ou aquele balneário da moda ou não comprou uma televisão nova (daquelas que todo o mundo tem, menos ele).

É que Lucas só trabalha em um colégio, no turno da manhã, e não dá muitas aulas, porque quer se dedicar mais à sua tese e ao trabalho voluntário que realiza no Hospital do Câncer, contando histórias para as crianças.

Lucas é apaixonado pela obra de Clarice Lispector, e escreve uma tese sobre ela por puro prazer, sem nenhuma ambição intelectual ou vontade de ingressar como professor em uma universidade.

Na verdade, Lucas quer ser escritor, mas de ficção. Quer escrever contos e romances de aventura. Já tem algumas histórias concluídas, mas elas ficam guardadas, em segredo.

Só duas pessoas sabem desse seu desejo: Sofia (que o alimenta com carinho, para que um dia floresça na forma de um belo livro publicado), e um jovem chamado Oscar, filho de um grande amigo seu, um poeta, já falecido.

Oscar é cego desde os cinco anos. Hoje, aos dezoito, sentado sozinho na varanda da sua casa, aguarda a chegada de Lucas, que lê para ele todos os sábados.

Oscar conhece Braille, que aprendeu ainda criança, e está sempre ouvindo algum CD com romances e contos gravados, mas gosta muito das leituras de Lucas, que além de ter uma presença reconfortante, dá vida aos textos de uma maneira extraordinária.

É que Lucas lê com amor, sem querer nada em troca.

Oscar é um rapaz solitário e triste. Faz tratamento para depressão. E segundo o psiquiatra que o trata, as leituras de Lucas, todos os sábados, fazem muito bem a ele.

Gabriel é filho de Lucas e Sofia. Tem seis anos, é esperto, inteligente e hoje está muito feliz porque vai se apresentar no sarau da escola, onde fará uma homenagem ao pai.

Lucas explicou a ele que não poderia assistir ao início do sarau, pois estaria na casa de Oscar, mas que chegaria a tempo para ver a sua apresentação, às dezoito horas.

Lucas está agora na casa de Oscar, sentado numa confortável poltrona de couro, lendo para ele “A paixão segundo G.H.”, de Clarice.

Faltam quinze minutos para as dezoito horas.

Lucas sabe que se não interromper a leitura agora não chegará a tempo de assistir à apresentação do filho.

Oscar estremece a cada frase lida pelo amigo, tocado pela força e beleza do texto, que ele sente vibrar fundo em sua alma. Chora por dentro, segurando junto ao peito o último livro de poemas do pai, entregue hoje cedo pela editora.

Oscar está sozinho com Lucas.

Enquanto lê, Lucas segura a mão gelada e trêmula do amigo, esforçando-se para não perder a concentração.

A mãe de Oscar disse que chegaria por volta de cinco e quinze, mas até agora nada.

Lucas vai à cozinha e tenta ligar para a esposa, sem sucesso. Com certeza o celular dela está desligado, pois o sarau já começou. Volta para a sala e recomeça a leitura, ouvindo dentro de si um apelo mudo para que ele não vá embora, para que não deixe ali, no silêncio de uma leitura interrompida – de um livro mágico e perturbador que não permite interrupções –, um jovem cego, sozinho, mergulhado na escuridão da própria dor.

E continua...

"Sofremos por ter tão pouca fome, embora nossa pequena fome já dê para sentirmos uma profunda falta do prazer que teríamos se fôssemos de fome maior. O leite a gente só bebe o quanto basta ao corpo, e da flor só vemos até onde vão os olhos e a sua saciedade rasa. Quanto mais precisarmos, mais Deus existe. Quanto mais pudermos, mais Deus teremos".

E continua...

Chega em casa às oito da noite, levando um exemplar do último livro de poemas de Amadeu Rodrigues, seu falecido amigo: uma bela edição em capa dura, presente de Oscar.

Amadeu... O velho e querido Amadeu... Poeta solitário, homem simples, que poucos viam e quase ninguém conhecia.

Lucas pensa no amigo com afeto, buscando na memória uma imagem que o traga de volta, mas tudo que lhe vem é uma alegria doce que se abre toda num sorriso.

De repente, Gabriel vem correndo do quarto, com os olhos brilhando de alegria, e lhe dá um abraço apertado.

Sofia aparece logo em seguida e faz um sinal com o dedo, pedindo silêncio ao marido.

Gabriel volta para o quarto e Sofia explica:

Ele viu você ao meu lado hoje no sarau, durante toda a apresentação, e depois, no portão, não te encontrando, perguntou onde você estava. Eu ia dizer que você não tinha ido ao sarau, quando o homem que estava ao meu lado no auditório, sentado onde você certamente estaria, apareceu do nada e disse para o Gabriel, cheio de ternura, que você tinha ido ajudar um amigo e que nos encontraria em casa. O homem me olhou sorrindo, e aquele sorriso me calou...

Sofia se aproxima do marido, maravilhada, e continua:

Dá para acreditar, Lucas? O Gabriel viu no rosto daquele homem simpático, sentado ao meu lado, a poucos metros do palco, o seu rosto. O SEU rosto, Lucas! Ele até sorriu e acenou para o homem... Um desconhecido! Na hora eu achei estranho, pensei que fosse para mim, mas vi que o homem acenou de volta, sorrindo... O que foi?

Lucas pega o livro de poemas que está sobre a mesa. Abre-o na página onde há uma foto do autor e pergunta: É ele? Olhe bem...

Sim, diz Sofia espantada.Você o conhece?

Lucas sente um arrepio lhe percorrendo o corpo e seus olhos se enchem de lágrimas – lágrimas de alegria e gratidão.

Este é o Amadeu, Sofia...

O velho e querido Amadeu...