Sarney em 1984

Outro dia eu escrevi algo sobre o famigerado "1984" - famigerado parece uma coisa feia, mas não é. Eu dizia alguma coisa sobre as tele-telas e o controle da sociedade. Nessa semana, o senador José Sarney me fez lembrar mais uma vez do livro de Orwell, só que por outros motivos. Explico: o personagem principal de "1984" chama-se Winston Smith e tinha um emprego no lugar chamado de Ministério da Verdade. Sua função era reescrever as notícias antigas de modo a apagar o passado. Se o seu país estava naquele dia em guerra com a Lestásia, era preciso que todos os documentos mostrassem isso - ainda que um dia eles houvessem sido aliados.

É mais ou menos isso o que Sarney sugere: estando hoje as nossas fronteiras consolidadas, sem indícios de conflitos com nossos países vizinhos, e vivendo a América um momento de relativa calma democrática, é preciso remover todos os documentos que insinuem o contrário. Não podendo o senador reescrever de próprio punho todos os documentos oficiais que tratam da conquista de fronteiras, resolve então defender o sigilo eterno das informações.

O que Sarney está dizendo, com um pouco mais de doçura, é que a verdade dói. E que o conhecimento da história não é motivo suficiente para suportar essa dor. Pelo contrário, abre mais feridas, feridas que já havíamos esquecido. E provavelmente prejudica a Pátria.

O senador Sarney é um homem que acredita na Pátria. Acredita com paixão, quase adoração. Não admite, portanto, que ela corra risco - e é isso que a história pretende fazer.

Mas no fundo Sarney é um homem bom: ele quer poupar os presidentes da Bolívia e do Peru de sentimentos mesquinhos como a cobiça, a inveja e a vingança. Sarney sabe que, se esses países tomarem conhecimento de um mapa da América do Sul diferente do atual, fatalmente começará uma terrível guerra, que provavelmente nos extinguirá a todos em pouco tempo.

Por isso, o ideal é esconder esses documentos, e seria melhor queimá-los, pois, mesmo se um brasileiro consultar, não poderá fazer menção alguma a eles. Também seria altamente recomendável que os livros de história nada mencionassem sobre o assunto, pelo mesmo motivo. A nossa história começou em 1500 e, para nossa felicidade, tínhamos as mesmas fronteiras de agora. Até o Acre estava lá. Tudo perfeitamente em harmonia.

Seria necessário minimizar também os avanços dos bandeirantes, que foram abrindo espaço por onde passavam e se espalhando por todo o território. O que nos importa realmente é o resultado final dessas conquistas. O Brasil sempre foi o que hoje é, desde tempo imemoráveis, e é dessa maneira que precisamos amá-lo. Tudo que escapar disso só pode vir de gente que não ama o Brasil e que quer ver país o país em complicações diplomáticas.

Saudemos o senador Sarney por tão zelosa manifestação em defesa da soberania nacional. Só com o esquecimento, e sem a história, o amor e a paz universal são realmente possíveis.

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 17/08/2011
Reeditado em 17/08/2011
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