LOUCO
Sem a possibilidade de identificar o que ou quem estava produzindo aqueles sons balbuciantes, ancestrais, continuei andando na direção deles.
Sem sombra de dúvida eram produzidos por um animal, restava descobrir qual.
Na esquina, quando entrei na outra rua, do lado contrário ao que eu estava, uma casa toda gradeada e na varanda, que chegava até a calçada, um homem, jovem, adulto, vestido com calção verde e sem camisa. Os cabelos grandes, negros, mostravam sinal de terem sido penteados logo após o banho recente.
Quando ele me viu, ficou de pé segurando-se na grade e abaixando-se com o braço para fora, me mostrou os brinquedos de plástico e de borracha atirados na calçada.
Seus balbucios eram semelhantes ao de criancinhas que, confinadas em quadrados “brincam” de atirar para fora todo arsenal de brinquedos coloridos para que um adulto apanhe, recoloque para dentro e ela (a criança) recomece jogando outra vez, um a um, todos os brinquedos para fora do quadrado.
Apanhei os brinquedos e entreguei a ele que sorria satisfeito ao recebê-los. Quando entreguei o último, ele (a criança no corpo adulto) jogou, um a um, todos os brinquedos de volta na calçada.
Repetimos a operação – recolhe brinquedo – por várias vezes e que foram, sistematicamente, atirados fora.
Pela enésima vez, apanhei-os todos dizendo:
- É a última vez...
Ele acompanhou os gestos com a fisionomia de uma criança, feliz por ter conseguido alguém para brincar.
- Ciau! Vovô vai ali, ouviu?
Quando saí do seu foco de visão, os brinquedos foram atirados novamente para fora e os sons recomeçaram.
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Na natureza, os outros animais descartam os filhos que não têm possibilidade de desenvolver uma vida independente.
Algumas de nossas nações indígenas descartam os deficientes quer sejam recém nascidos ou adultos, como faziam os esquimós antes de serem inoculados com a cultura ocidental, da mesma forma que em algumas regiões africanas.
No período nazista, guiados pela falácia da raça pura, os deficientes eram eliminados, mas isso não era atitude cultural e sim ideológica.
Nossa cultura sócio-religiosa exige que mantenhamos vivos os deficientes que geramos.
Considerando que viver é ter autonomia sobre si, autodeterminação e responsabilidade sobre os próprios atos e para com o semelhante, surge a pergunta incômoda:
- Para que serve uma vida assim?
A não ser que se concorde com os postulados das religiões, da espiritualidade, da programação reencarnatória e da teoria kármica essa vida (vida?) só serve para dar uma trabalheira insana que muitos utilizam para demonstrar à sociedade;
- Oh! Como ele é dedicado...
- Oh! Como ele é amoroso...
- Vejam todos, que pessoa maravilhosa eu sou ao cuidar desse inválido...
Nossa função biológica é garantir a perpetuação da espécie, gerando filhos e dispensando-lhes o cuidado necessário ao seu desenvolvimento, até que se tornem independentes e que sejam capazes de produzir a próxima geração.
Esse ser, com quem tive a oportunidade de interagir, salvo exame mais acurado e com o auxílio de profissionais das áreas afins, me demonstrou desenvolvimento neuro-cognitivo em torno dos quatro meses da vida humana extra-uterina.
Apesar de apresentar os caracteres secundários pós-puberdade (como barba, pelos no peito, nos membros superiores e inferiores e proeminência da glândula tireóide) não me parece que tenha capacidade motora para reproduzir.
Durante o tempo da observação, (pelo método Ad Libitum), ele ficou de pé por pouquíssimo tempo, preferindo a posição sentada e, quando, propositalmente, atirei um dos brinquedos fora do seu alcance imediato, ele engatinhou, sentou junto ao brinquedo prendendo-o com a coxa direita ao sentar-se sobre ele, demonstrou dificuldade motora para liberar o brinquedo e voltou, engatinhando, para perto da grade.
Ora, se ele é incapaz para executar a locomoção com eficiência, como poderá executar os movimentos ejaculatórios em monta natural?
Por outro lado há que se considerar que, para a reprodução, o funcionamento das gônadas é regulado pelo cérebro, sob estímulo da libido, e aos quatro meses de idade, o ser humano ainda não tem consciência do seu gênero nem distingue quem seja macho ou fêmea.
Portanto, biologicamente falando, essa vida não serve para nada.