De serviços e não serviços

DE SERVIÇOS E NÃO SERVIÇOS

(crônica publicada no jornal "Diário Catarinense" de 17.08.11)

Toda manhã ela está lá, toda de preto, os cabelos acinzentados de grisalhos, umas trouxas socadas em mochilas pardas e uma placa de papelão que segura nas mãos, voltada para a rua movimentada: "Faxina - R$ 30,00". A mulher é branca, beira os 50 anos para cima ou para baixo e acomoda-se sentada junto ao meio-fio da calçada. Exibe sem ostentação um ar e um porte de certa dignidade que confessam um passado mais confortável.

Dir-se-ia meio louca. Houve ocasião em que ela vinha de longe, a pé, seguida por um fiel cachorrinho vira-lata, sua companhia devotada, a quem alimentava como podia. O cão sumiu, por algum motivo. Seria interessante perguntar a ela pela história do animalzinho de estimação, de pelo tão descuidado quanto parecem estar os cabelos da mulher, os quais, de tempos em tempos, ela coça enfiando os dedos por entre os fios sempre presos num coque para trás até aliviar o desconforto no couro cabeludo.

Trinta reais parece ser um preço baixo demais para o serviço de faxina, supostamente em casas e apartamentos. Tão barata e desvalorizada, a tarefa que ela apregoa, que decerto assusta muitos clientes potenciais. É mais razoável pensar que ela visa como público-alvo da sua propaganda os estudantes das universidades próximas, sempre tão necessitados, em geral, tanto de dinheiro como de serviços de limpeza, higienização e organização em seus aposentos de jovens recém-saídos de casa, subitamente lançados no meio da correria de uma cidade tão pouco conhecida quanto de escassos conhecidos.

O fato é que, se ela está lá toda manhã, junto à sarjeta da rua movimentada, e permanece viva, com saúde e disposição para o seu trabalho, é porque algum mercado existirá para o serviço que ela oferece.

Perto dali, o homem branco de fartos cabelos pretos e viçosos, aos 45 anos mais ou menos, vestindo uns tênis de marca, novíssimos e coloridos, e um abrigo para exercícios físicos com blusas e camisas sobrepondo-se em camadas desordenadas por fora da calça, apresenta-se mais uma vez à recepcionista.

- Bom dia, minha querida! Como passaste o final de semana? Mais uma série de fisioterapias começaremos hoje, meu amor.

- E o pé, tem melhorado com o tratamento?

- Que nada, menina! Quando penso que vai ficar bom, volta tudo de novo.

- Há quantos meses estás tratando do pé? Mais de ano, já, se bem me lembro.

- Mais de ano? Muito mais, minha criança! Deves lembrar que estive muito perto de uma terrível fratura, e isso não se cura assim, de uma hora para outra.

- Olhando ninguém dirá que tens problema, não dá para perceber incômodo maior, nem mesmo uma pequena falta de chão. Vejo-te por aí a andar de um lado para outro, a subir e descer essas escadas sem dificuldade alguma.

- É verdade, meu doce, isso o tratamento tem feito por mim. Sabes qual é o problema? Parece coincidência, mas é só se aproximar a data da perícia médica que vai me liberar para eu voltar ao trabalho que dores intensas, cruéis, tomam conta de mim, a ponto de eu não conseguir apoiar o pé no chão sem sofrer horrivelmente.

- Coitado! Tenho muita pena de ti.

- E eu então, fofa? Mas não achas que parece mesmo uma grande coincidência? Isso me obriga a viver encostado - e o homem, de voz sempre tão sonora e positiva, dá uma bruta gargalhada sacana.

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Lúcia informa: segunda-feira, 15 de agosto, foi feriado municipal em Jundiaí, SP, por respeito ao dia da padroeira da cidade, Nossa Senhora do Desterro.

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Amilcar Neves é escritor com oito livros de ficção publicados.

A partir de 01.08.2011, é um dos seis candidatos à Cadeira nº 32 da Academia Catarinense de Letras.