SIMPLESMENTE DALVA
Hoje eu vi você virar a esquina. Enquanto virava naquele fim de tarde e com o sol quase se pondo, uma sombra comprida ainda cambaleava naquele encontro de ruas. O frio que fazia naquela tarde de inverno tomou conta de mim e percorreu-me o corpo misturado a um sangue igualmente gélido. Nem ao menos você olhou para trás para um último adeus. Simplesmente se foi de mim, sem aviso prévio, sem cerimônia e sem despedidas. Um simples adeus ao fechar a porta do quarto, saindo pela varanda com sua mala pequena, onde cabiam apenas os poucos pertences seus e os sonhos de um mundo imenso a ser descoberto. Tentei em vão um último abraço ou lhe arrancar um sorriso derradeiro. Inútil. Você saiu a passos apressados descendo aquela rua de pedras mortas como minha alma, ali grudadas há séculos naquele chão. Cabeça baixa, olhos úmidos e talvez voz sufocada, partiu simplesmente, deixando para trás um coração ainda palpitante de paixão, tal como naquele primeiro dia em que nos vimos. Olhos lacrimejantes, fiquei ali estático vendo você partir daquela que foi sua casa por anos. Para trás ficando sonhos, alegrias, realizações. Aliás, não. Pelas janelas partiam também, para outros caminhos que não os seus, as esperanças, os sonhos, as realizações. Nesta casa nada restou além da já saudade intensa.
Ainda hoje, depois de anos, contemplei aquela esquina das lembranças últimas que trago de você, ainda tão vivas quanto aquele ipê que floresce a cada primavera. Minhas lembranças são tão vivas quanto o ipê da porta desta casa, mas que permanece anônimo e escondido, inexistente e invisível na maior parte do tempo. É como se visse você novamente. Sempre que paro diante desta casa e volto meu olhar para baixo, vejo a esquina e seu corpo esguio dando os últimos passos dos quais me lembro. Nunca mais o vi. Ficou aqui uma mulher solitária nesta imensa casa a passar os dias acalentando o filho que não chegou a nascer. Nas paredes, imagens mortas de nossa felicidade inexistente, sorrisos perdidos no ar, como folhas secas num vendaval, atiradas para lugar nenhum, condenadas a vagar para rumo qualquer, inerente à sua vontade.
Não sei onde você esta. Já ouvi notícias suas de um lugar distante daqui. Isso também já não importa,pois mesmo se do outro lado da rua estivesse, o abismo de nossas diferenças nos deixaria tão longe um do outro, como os planetas no universo, vagando sempre ao lado um do outro, em obvias rotas, condenados, no entanto ao desencontro eterno. Dalva é uma sombra, um sorriso morto de fotografia de parede, perdido no tempo, mesmo após a partida. Um momento apenas, um segundo captado por uma lente que continua a eternizar um instante surreal, efêmero, mas constante sob os olhos dos admiradores e anônimo para os desatentos. Não soubemos ser complemento de nossos antagonismos e não soubemos abrir mão de nossos paradigmas existenciais e de nossas verdades absolutas. Perdemo-nos um ao outro em virtude de nós mesmos. Ficamos em nós, com nosso egoísmo e com nosso “ensimesmamento” desedificante.
O que sei é que aqui estou a morrer de saudade diária, a degenerar-me aos poucos numa constante melancolia. Sobrou a esquina e seu ensinamento. Quando não sabemos entender que o outro existe em suas circunstâncias, perdemo-nos a nós mesmos e permitimos que o outro se vá. Quase sempre sem volta. Olho para o meu ipê. Suas flores estão quase todas ao chão. Minha vida assim também o é. As poucas esperanças e alegrias que sinto são tão passageiras como elas. De resto eu inexisto, “inotável” para mais um ciclo de verão, outono, inverno e um relance de primavera. Percebo em cada canto um pouco do seu sorriso e ouço suas vozes, como um fantasma a assombrar meus dias solitários. Tal qual minha árvore preferida, não sei se ainda terei uma primavera florida. Dependerão de minhas raízes, frágeis, depois de sua partida. Sinto-o aqui sempre em mim. Falta-me a seiva da vida que produz as flores: você.