A Autópsia

A Autópsia








Quatro ou cinco legistas passaram a última madrugada exumando um cadáver fresco. O encarregado de transcrever o diálogo dos legistas não se deu ao trabalho de identificá-los. Presume-se que sejam quatro ou cinco. A produção decidiu deixar para o leitor a tarefa de imaginar se eram quatro ou cinco, isso, é claro, sem contar o cadáver.


- Ei, o que esse sujeito comeu? Me passe a pinça. Ah...é miojo. Cruzes, ele está repleto de miojo.

- Eu achei café, bem aqui ao lado do pâncreas, me passe o bisturi, preciso checar essa coisa.

- Ora, o que vem a ser esse negócio, entalado no esôfago? Parece um bilhete de despedida...

- Ele se matou? Que bilhete de despedida o que, já te disse para não trabalhar sem óculos, isso, ora, é um pedaço de embalagem de miojo.

- Dá pra identificar o sabor? Ei, vocês sabiam que essa madrugada foi estranhíssima, para não dizer atípica? Todas as pessoas do mundo acordaram às 5 da manhã. Os jornais dizem que poucos conseguiram voltar a dormir.

- Oh, que lorota, ops, vejam, achei nicotina, um chumaço de nicotina, bem aqui no ventríloquo...Se bem que eu vi os jornais noticiando algo parecido. Mas, e no Japão?

- Me passe a lupa, acho que achei uma bituca de cigarro... No Japão as pessoas pegaram no sono às 5 da tarde. Foi uma balbúrdia. Acidentes de carro, os metrôs pararam, praticamente um caos.

- E na China? Esperem, vejam, uma casca de banana entre o duodeno e esse outro órgão, que eu sempre esqueço o nome...

- Intacta? Que tipo de banana, nanica? Na China quem não dormiu foi fuzilado, ou ao contrário, você sabe como eles são com esse negócio de fuzilamentos.

- Vejam, mais miojo, misturado com nicotina e...sim, isso mesmo, banana, uma papa, bleargh...Acho que nós não vimos nada por estarmos aqui desde às 3 da manhã, mas vocês souberam do que aconteceu nos açougues?

- Ahá, quem disse que eu preciso de óculos para identificar um bilhete de despedida. Reparem.

- O que está escrito? Em São Paulo, às 5 da manhã todos os açougues estavam abertos e os açougueiros espantados com pilhas de bois abatidos na entrada dos estabelecimentos.

- Não sei se é um bilhete de despedida. Trata-se de um pedaço de papel sulfite, 90 gramas, sem pauta, e está escrito com caneta esferográfica azul: “Minha amada, não tenho culpa por passar tão mal. Deve ser a idade. Descobri um novo sabor (garranchos)”. Cruzes, esse sujeito era analfabeto.

- Se era analfabeto não sei, mas no fígado dele há outra casca de banana. Ora essa, quem sabe isso não é mais um pedaço do bilhete...

- Afinal, o que aconteceu nos açougues?

- Pilhas de bois. Pilhas de até 10 metros de altura, com os bichos empilhados. Acham que foi um atentado ou coisa do gênero.

- Achei outro pedaço do bilhete, na garganta. Em São Paulo, nos anos 20, era comum ver bois mortos nas portas dos açougues. E nos anos 80, quando eu era mocinho, vi essa cena em cidades do Rio e de Minas, mas eram 2 ou 3 bois. Pilhas de 10 metros, nunca ouvi contar.

- São tempos estranhos. Esse sujeito só comia miojo? Oh, mais nicotina. E banana!!

- Vejam o que está escrito no bilhete: “Oh minha amada, avise as crianças que ficaremos milionários. Estou agora escrevendo esse bilhete e correndo para pegar o ônibus (garranchos)”.

Depois de um curto silêncio, um deles ponderou:

- Tô achando que esse cara foi atropelado, isso sim. Ops, achei outra coisa, me dá a pinça. Mais um trecho do bilhete...

- Me dá isso aqui, você não devia trabalhar sem óculos, não é bilhete coisa nenhuma é, ora, parece uma embalagem de miojo, mas caseira, coisa feita em impressora jato de tinta.
Está escrito: “novo miojo sabor cheddar sabor morango”.

- Sabor escrito duas vezes? Falei que ele era ignorante.

- Cheddar sabor morango...bleargh. Será que era essa a descoberta?

- Bom, já descobrimos que ele morreu atropelado, vamos embora? Quero ver as pilhas de bois.

- Parece que no Japão todos os sushis saíram voando dos restaurantes e entraram no mar. Um cinegrafista captou tudo. Está no Youtube.

- São tempos estranhos.

- Muito estranhos.


(Imagem: F. Nobis, Parque da Lage, no bairro Jaridim Botanico. Casa construída em 1920)
 
Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 16/08/2011
Reeditado em 21/09/2021
Código do texto: T3163560
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