SE NÃO ME FALHA A MEMÓRIA...
SE NÃO ME FALHA A MEMÓRIA (parte 1)
"A minha história é, talvez, é talvez igual a sua,
jovem que desce do Norte e que, no Sul, vive
na rua (...) apaixonado e violento como... como
você. (...) Eu sou como você... ainda!"
do cantor BELCHIOR, in "Retrato 3 X 4"
"O Homem é o único animal capaz de tropeçar
duas vezes na mesma pedra".
ALBERTO MONTALVÃO, in "Moderna Enciclopédia
de Relações Humanas", 1979, Novo Brasil Edit./SP
A extensa relação de "micos" que consta deste artigo é, na verdade, repetição do que já foi contado em contos (na forma de fantasia) e em crônicas, mas que decidi reunir agora num só texto. Este relato complementa o que deixei registrado nas 2 partes de "Os Micos que vivi".
Creio que o "mico" mais antigo me sucedeu aos 4 ou 5 anos, ainda na creche comunitária da Paróquia de Copacabana. Após o almoço, a garotada dormitava em cadeiras de praia espalhadas por todo o salão, na entrada da creche. Curiosamente, a cozinha ficava ao lado do "palco" onde se rezava a Missa às vezes, não sei bem porquê, já que a igreja matriz era vizinha à creche. Por trás da cozinha, os banheiros... certa tarde, saí de um deles às carreiras, assustado não sei bem com o quê. As copeiras lavavam o chão, água de sabão por todo o canto. Caí de bunda no piso e, deslizando, fui parar debaixo das primeiras cadeiras da garotada sonolenta, para deleite das cozinheiras. Nunca mais fui ao banheiro!
Da creche, minha mãe nos levava para seu trabalho na Galeria Menescal, patrões mineiros riquíssimos num apartamento imenso, meia dúzia de cômodos. Ficávamos "contidos" num quartinho contíguo à cozinha e, sem nada para fazer, o dia custava a passar. (Vivemos de casa em casa, de apartamentos de luxo como o do embaixador do Canadá ou Colômbia, no Flamengo, a uma igreja anglicana americana com a única máquina de Coca-Cola da cidade, funcionando com moedas, um luxo, lá por 1957 ou 58.) Os Campos de Mello nos tratavam muito bem, mas sem regalia alguma e, creio eu, dona Apolônia jamais perdoou a predileção por dona "Nenê", a simpática cozinheira negra da tradicional família de Minas Gerais.
Vai daí, minha mãe cultivou a vida toda um velado "racismo", uma certa antipatia às vizinhas "de côr" lá do Morro, mesmo quando amiga delas. E era dada a escândalos: certa vez quebrou uma tábua na porta do barraco da dona Ivone, mãe da bela Sandra, jovem negra de "fechar o comércio", como se dizia antigamente. Não queria a amizade dela conosco... ou "coisa pior", virar sogra da moçoila.
Mas, ainda estamos no início dos anos 60, "Rio Quatrocentão", um governador negro (de nome NEGRÃO de Lima) sucedendo ao polêmico Carlos Lacerda, "matador de mendigos" segundo a Imprensa da época. Suponho que meu pai, nas férias de fim de ano, nos trazia de Rio Negro, no Paraná, para passar o Natal no Rio. Não há outra explicação, nas minhas lembranças, para o fato de sempre estarmos no Rio nessa época, mesmo tendo ido para Santa Catarina (para estudar) em 1961.
Lembro, pois, das "pescarias" no apartamento de meu pai, no Catete, onde êle está até hoje, perto dos 95 anos, ou além. Do 5º andar, com vara, linha e "anzol" improvisado, gastávamos a manhã inteira "pescando prendas" nas janelas dos apartamentos abaixo do nosso. Meu pai acabou com a "brincadeira" pondo-nos como "trocadores" nos ônibus antigos, vulgo "lotação".
Eram veículos longos e barulhentos, motor na frente, espécie de "focinho" alimentado á agua. Com uma porta só, pagava-se na saída, conforme a côr da ficha plástica, 3 ou 4 roteiros distintos, a "passagem inteira" era para quem fazia o trajeto todo. E já havia "golpistas", em época de população honesta e ordeira... sujeitos que traziam ficha de passagem inteira no bolso e a trocavam pela de itinerário mais barato. Suávamos o dia todo no ônibus calorento, penando para dar o troco certo aos passageiros irritados.
Meu pai, sempre de óculos ray-ban, parecia o "Allan de Longe"... trocou o "lotação" por um táxi, adiante virou motorista de Embaixada e, nos anos 70, de caminhão, à serviço da CVRD, hoje VALE.
Filho de pobre vive "encostado" na casa de um ou outro conforme a mãe, doméstica, muda de emprego. E assim passamos, eu e meu irmão gêmeo, por 5 ou 6 mansões (digo, apartamentos) de luxo ou, então, entre 1959 e 1967, na casa da irmã do pai, tia Anita, em Rio Negro, sul do Paraná, na fronteira com Mafra/SC. Por volta de 1961/62 nosso tio "Nato" comprou uma bicicleta infantil importada, verde esmeralda, linda, MerckSwiss. Talvez fosse do primo Osmar, muito pequeno na época, mas quem brincava com ela éramos nós. Logo que adquiri equilíbrio tomei coragem para descer uma longa rua ao lado de casa e que terminava na pista principal, com grande movimento de carros.
E lá vou eu... pernas abertas, fora dos pedais e a bicicleta cada vez mais veloz. O sorriso deu lugar à uma expressão de desespero e suponho que devo ter berrado feito um possesso. Se tinha freios não me avisaram... bem na esquina havia um enorme Moinho de erva-mate (para fazer chimarrão), o barulho das correias semelhante a motor de carro. Apavorado, "raciocinei" que se virasse à esquerda bateria de frente... com o carro "que estava vindo". Se dobrasse à direita, "idem ibidem", têrmo latino que todo mundo usava, sem saber direito o seu significado. Cortei a avenida em linha reta, rumo ao calçadão de 40 cm de altura, construído para proteger as casas dos oficiais de um ou outro calhambeque ou "fubica" desgovernados.
Acordei na farmácia do Quartel, com um "galo" gigante no "cocoruto", cabeça, antigamente. Tio "Nato" pendurou a bicicleta na parede da dispensa, o pneu da frente "em forma de 8".
Mas, um "mico" maior ainda estava por vir. Tia Anita, num ou noutro domingo, nos dava dinheiro para a pipoca e o cinema. A prima mais velha, Ivone, nos levava junto com seu irmão, o "reizinho da casa", primo Osmar. Entre Tarzans, Macistes, Hércules e vida dos santos, escolheram um dia um tal de "Os estranguladores de Bombaim". Como lazer (?!) e diversão o filme era um despropósito. Os bisavós de Bin Laden, Khadafi e Sadam Houssein estavam todos lá, como figurantes. Eram enforcamentos, pescoços cortados e sangue do princípio ao fim... no meio da fita fiz um escarcéu danado, queria ir embora do cinema. Osmar e meu irmão estavam adorando a "chacina"... incomodada por meus protestos e temendo um escândalo Ivone arrastou todo mundo prá fora. Tia Anita nunca mais nos deu "mesada" para ir ao cinema.
Os 4 anos (1961/64) no colégio de freiras em Alto Paraguaçu, município de Itaiópolis/SC, foram um celeiro para "micos" de toda espécie. Creio que todos os fatos que a memória senil recuperou estão contados em "Os Micos que vivi", parte 1, exceto o que virou crônica. Não lembro se algum dia lavei os banheiros do colégio das Irmãs Vicentinas, mas eu e meu irmão tínhamos um bocado de afazeres diários, tudo porque meu pai "não tinha tempo de vir pagar as mensalidades". (Apareceu ano e meio depois, quitou "alguma coisinha" e sumiu!)
Por isso, me lembro de deveres como descascar milho (debulhar espigas), fazer sabão com o intestino de porcos, buscar beiju na fábrica próxima e levar ao pasto uma vaca imunda e fedorenta, da qual nunca soube o nome. Nos detestávamos com igual vigor... um dia, quando atravessava o potreiro para ir ao Moinho, a bandida me deu uma "corrida". Sem tempo nem chances de chegar ao portão, mergulhei entre as linhas de arame farpado, deixando nacos de carne pendurados na cerca e vendo a vaca "gargalhar" com minha covardia. Livrei-me da obrigação de cuidar dela mas ganhei feridas (e cicatrizes) para a vida inteira. Aquela ... "vacabunda!"
Meus anos nos colégios internos estão descritos na extensa crônica "Velhos tempos, belos dias" e em outras mais que abordaram quase toda a minha infância. Ao abandonar os estudos no fim de 1966, tive que regressar ao Rio em fins de 1967 ou no inicio de 1968. Até meados de 1969, quando consegui o primeiro emprego com registro na CTPS (a famosa Carteira profissional), estive em perto de dez ocupações, cada uma mais estranha que a outra e todas elas por curtíssimo período. Meu "recorde" foi o de umas 3 ou 4 horas somente e, por mais incrível que pareça, a F. ROMEIRO depositou o FGTS de meio dia de "trabalho". Adiante, eu trabalharia em diversas boutiques da zona sul carioca, ficando somente 2 ou 3 meses em cada uma.
Também menos de 4 horas durou um "bico" como "marqueteiro", distribuidor de folhetos de propaganda (de dedetização) nos prédios da velha Botafogo. Subindo às escondidas dos porteiros e "voando" escada abaixo após cada andar, espalhei mais de 300 folhetos em 12 ou 15 prédios. Cheguei suado e feliz ao escritório, por volta da "meia hora" , 12,30hs aqui no Pará. O dono me olhou de cima abaixo e, com voz gelada, disse que não me pagaria a diária, ninguém entregava tudo tão rápido. E a "aventura" terminou alí! Trabalhei uns 2 dias vendendo refrigerantes na beira da praia no Posto 3, de "babá" de um cão imenso e negro, de ar assustador e que só comia (dia e noite) uma bacia de angú quase sem nada dentro e fui parar até numa favela do Leblon, a "Praia do Pinto" -- sem praia alguma e que adiante pegou fogo -- onde penei "semiescravo" sem pagamento algum e dormindo sobre papelão. Não sei como lá entrei nem como de lá saí, já que nada conhecia do local.
Fiquei semana e meia no "gongá" de um adivinhador do futuro gordinho e "delicado", com bola de cristal e tudo, que êle controlava com o joelho, sob a mesa. Era maníaco por limpeza, usava ácido muriático no chão da cozinha, todas as noites, quase acabei com a sola dos meus pés.
Fui "garçom" e faxineiro de uma antiga pensão na rua das Laranjeiras e terminei por botar minha mãe naquela "fria". Era trabalho que não acabava mais, o velho prédio tinha 2 andares, muitos fregueses e eu, com a cabeça nas nuvens, esquecia os pedidos, trocava os pratos, fazia uma confusão danada. No espaço de ano e meio foram perto de dez funções diferentes, mas eu tinha boa aparência e razoável cultura e ninguém me recusava emprego. Por puro desespero aceitei vender seguro de vida, logo eu que detestava vendas e, sendo tímido, conversar com os outros me era extremo sacrifício.
O gerente, expansivo, me emprestou enorme paletó surrado e uma horrenda gravata listrada azul e me mandou para as ruas. Passei dia e meio enganando a mim mesmo -- sem bater numa só porta! -- antes de desenganar o sujeito... entreguei o lugar na tarde seguinte, cheio de vergonha e aliviado por não ter que usar mais aquela gravata "cheguei".
Mas o emprego qua mais me doeu perder veio pouco antes de eu me tornar "estafeta", entregador de telegramas do secular DCT, depois EBCT e, hoje, CORREIOS. Com um pai que adorava fotografar eu quase diria que a fotografia estava no meu sangue. E o Destino conspirou para eu conseguir entrar na empresa de fotos mais famosa de toda a Zona Sul, talvez até do Rio inteiro. A Foto AZSMANN (não lembro mais como se escreve!) cobria os casamentos mais chiques da cidade e fazia os álbuns mais caros do Brasil. Cada foto era uma pequena fortuna... aprendi em 48 horas de trabalho o que levaria anos para descobrir sobre fotografia, apenas lendo ou na prática comum.
Infelizmente, havia a foto de um general falecido no meio do caminho. Essa foto de alguns poucos centímetros me tirou o que talvez fosse a chance maior de minha vida. O serviço era simples: a única foto que a família inteira tinha do sujeito -- dá para se acreditar nisso?! -- deveria ser buscada na casa dele, para ser reproduzida pela Foto Azsmann. Sem pasta ou bolsa, puz a "fotinha" dentro de uma revista, ônibus lotado às 17hs e, com as mãos para o alto a viagem inteira, nem percebi que a maldita foto caiu no chão do veículo. Antes de me demitir, o pai do "menino de ouro" chamado Egon me fez viajar ao ponto final da linha de ônibus -- do outro lado do Rio, no Méier ou Olaria -- para tentar localizar o envelopezinho. Tudo em vão!
Com a chegada dos empregos burocráticos, os "micos" praticamente sumiram. Em escritório não acontece nada, é cada um na sua mesa o ano inteiro. Mas a saga no antigo CORREIOS vale a pena ser contada, porém isso fica para o próximo "capítulo"... "nessa mesma Bathora e nesse BatCanal", como diziam os antigos seriados nas TVs preto & branco dos dourados e inesquecíveis anos 60, no século passado.
"NATO" AZEVEDO
@natoazevedo
@MuralEscritores
OBS.: minha sincera homenagem ao escritor e Prof.
NELSON HOFFMANN (RS), primeiro autor a me
acompanhar nos caminhos literários, normalmente
solitários e sem mãos amigas nem incentivo.