Cidades sem carros

Desde que Henri Ford deu seus primeiros passos em direção as suas quatro rodas o mundo nunca mais foi o mesmo. Ele diminuiu distâncias e soterrou ossos com o mesmo destino de um objeto lançado no tempo e no espaço. Naquela época o carro rodava de acordo com o avanço dos índices da sociedade competitiva do seu tempo. Hoje ele voa esmagando competidores. Essa liteira moderna produz riqueza e toxinas mais contundentes do que dez mil traficantes de haxixe.

Com o passar dos anos haverá mais carros sobre o mundo do que seres vivos sobre a terra. A frota global de máquinas andantes sobre rodas é a mais curiosa tragédia universal. Tragédia curiosa universal é aquela que sai para o trabalho e sorri nos dias de passeio com a maior inocência sobre o conjunto de fatores que matam a humanidade. Mereceria verdadeira atenção, porém numa escala de valores os governantes preferem lutar contra a fumaça dos cigarros do que contra os canos de descarga.

Todos desejam ter um carro em produção infinita. A educação para o trânsito é a mais viva lenda urbana porque não há lei que impeça o avanço de um objeto no espaço de modo certo ou errado, quando ele se apropria de um critério instantâneo de liberdade. A consciência não responde a 150 quilômetros por hora. O motorista ejeta sua ilusão de tempo e pode ser também ejetado por si ou por terceiros. De modo que a ambição de viver sobre rodas tocou a vítrea alma dos homens e bem pouco importa se o carro diminui o oxigênio diário, devaste cidades ou florestas. O importante é vender carros variados movidos por combustíveis fósseis ou qualquer outra geléia que mova o animal sangrento.

A condição sapiens do homem está cada vez mais ameaçada por duas manifestações distintas: espiritual e mecânica. Assim cada vez mais os homens precisarão de cuidados especiais para viver dentro do trânsito esmagador das estradas que jamais aumentam na medida do crescimento dos veículos que avançam assustadoramente. Quando o lucro de tal eficiência atingir o prejuízo fatal para humanidade alguém se erguerá do meio do entulho sideral e clamará: façamos algumas cidades sem carros! O que não quer dizer que a população se desloque rastejando para todos os lados. Com habilidade das ruas planejadas veículos deslizarão sobre superfícies fixas ao modo do aeromóvel que é genial e tímido. Bondinhos tipo elevador na horizontal carregando vizinhos sem nenhum histórico de atropelamento. Uma cidade sem carro e com locação para viagens para longe da vida urbana local. Até que os demais centros urbanos comecem a invejar a paz profunda de uma vida sem correrias, nem ameaças.

Ótimo otimista espera estar bem desperto quando chegar este maravilhoso dia. O dia da inauguração da cidade sem carro, sem automóvel, sem ônibus. A cidade onde viverão homens saudáveis, calmos, livres da pressa doentia dessa relação simbiótica. Homens que morrerão de rir lembrando como era o departamento de trânsito. Comos eles produziam gente com carteira e raríssimos motoristas.

Tércio Ricardo Kneip
Enviado por Tércio Ricardo Kneip em 15/08/2011
Reeditado em 15/08/2011
Código do texto: T3161352
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