Sansão, Dalila e Cabelo (não exatamente nessa ordem)
Enquanto esperava minha vez no salão de beleza, conheci uma moça que cuidava de recuperar os cabelos de ação danosa ocasionada por profissional incompetente.
"Meu cabelo era tão lindo!", suspirava ela. "Comprido, sabe? Parecia seda..."; e quase sussurrando: "Era praticamente a única coisa bonita em mim."
O lamento, diga-se com justiça, era exagerado: se ela, de fato, não se parecia com o por do sol, tampouco lembrava colisão de trem com banda de música; era o tipo de mulher que nem pararia o trânsito nem faria uma bala de canhão virar a esquina.
"Se gostava tanto do seu cabelo, porque quis modificá-lo?" (Minha curiosidade lógica ainda vai me enrolar em lencóis limpos, espero...)
"Não sei... foi impulso, acho." E ficou quieta por uns segundos - antes de ser acometida por outro impulso - ou intuição, quem sabe...
(Suponho que haja em minha testa uma tarja: DIVÃ. Isso talvez explique porque é relativamente fácil pessoas que mal conheço - além das que conheço bem - falarem de suas dificuldades; pode ser também porque o tom de minha voz não exprime julgamento, e as colocações que faço são do tipo 'você já pensou no caso sob outra perspectiva?')
Então, aos poucos, fui sabendo mais: era enfermeira numa cidade vizinha - com carga de trabalho consideravelmente pesada; tinha dois filhos adolescentes sobre os quais o nível de ascendência era baixo; sustentava a mãe, governanta-de-confiança-não-remunerada, cuja função variante (de avó) parecia ser anular sua autoridade de mãe; não tinha qualquer amiga íntima e, não bastando, mantinha um relacionamento com um indivíduo que a traía e maltratava fisicamente.
Perguntei-lhe se ela se considerava uma criatura fundamentalmente feliz. "Fundamentalmente feliz? Não entendo..." (é a resposta de praxe, então, não desanimei).
"Fundamentalmente, basicamente...", expliquei. "Você tem saúde física e mental? Seus familiares próximos também detém isso? Você ama seus filhos e sua mãe? Você aprecia seu trabalho e tem disposição para sustentar sua família de forma digna? Você é honesta para com o mundo e leal para com quem ama? É capaz de reconhecer um erro e tentar corrigi-lo ou minimizar suas consequências? Você se alegra com a alegria dos outros, mesmo que nem os conheça?"
A cada 'sim' que eu ouvia, também via ocorrer uma transformação: a voz mais firme, a coluna, reta, os olhos sorrindo junto com os lábios... Se fosse história de pescador, diria que até o cabelo se regenerou.
Indaguei se ela percebera que havia tentado mudar um dos únicos aspectos de si mesma sobre o qual detinha controle quase absoluto. Isso me parecia uma espécie de compensação: é evidente que ela interferia, total ou parcialmente, em muitos outros aspectos de sua vida, apenas não 'se sentia' eficaz nem eficiente, portanto efetiva, importante, potente.
Modificar o que controlamos é uma forma de auto-afirmação, de tentativa de retorno ao que consideramos bom para nós. O equívoco foi o foco; pior ainda para a auto-estima foi sentir-se mal pelo resultado da escolha.
E o equívoco quase sempre é o foco - não reconhecemos em nós as questões e as respostas realmente significativas; por vezes, nos metemos em armadilhas e ficamos a roer o próprio rabo; mutilamo-nos, sem de nada adiantar, enquanto permitimos que outros bichos devorem nossa carne.
Minha nova conhecida foi para casa bem mais animada, fortalecida. Eu fiquei matutando: outra perspectiva, outro caminho... Novas estradas necessitam de novos sapatos?
Sansão achava que necessitava de cabelo e de Dalila. Naquela época - que pena! - não havia salão de beleza...