A Orquestra
Tinha vinte e poucos anos naquela 4ª feira, quando recebi o telefonema.
Do outro lado da linha ouço a voz de uma pessoa que diz ser um músico que conheci há meses atrás. Era saxofonista como eu. Pois bem, da época do nosso encontro, lembrei sim, de alguns elogios e de agradáveis minutos de prosa sobre música e músicos, mas havia esquecido seu nome. Agora lá estava ele do outro lado da linha, conversando inicialmente algumas amenidades até chegar ao ponto: ele não poderia tocar no próximo sábado e queria que eu o substituísse na Orquestra do Scala do Leblon, em um espetáculo protagonizado por Grande Otelo e Watusi.
Expliquei que não tinha experiência alguma com orquestras e que teria muito pouco tempo para examinar as partituras. Três dias seriam insuficientes. Ele me tranquilizou imediatamente dizendo que seria muito fácil para mim. Disse que já tinha me visto tocar e que o trabalho seria “moleza”, até porque ele era o 3º saxofone alto da Orquestra e a sua parte era muito simples. Disse ainda que o maestro não daria a um novato, como ele, uma parte difícil e que a minha experiência era mais do que suficiente para “dar conta do recado”.
Combinamos um preço e ele ficou de vir à minha casa entregar as partituras.
Chega a encomenda e começa a contagem regressiva para o sábado de Grande Otelo!
• 5ª feira à noite: o primeiro contato com o material!
Quase tive uma parada cardíaca! Pensei receber um envelope com duas dúzias de folhas, mas o que vi foi um pacote. Um pacotão! Dentro dele, não dúzias de folhas, mas sim um livro. Tipo livro caixa. Com capa dura e tudo. Parecia o repertório de uma ópera de Wagner.
Refeito do susto inicial, comecei a folhear o livro em busca de algum alívio, mas o que vi era assustador. Centenas de milhares de notas; uma profusão de ameaçadoras semicolcheias e fusas; modulações e alternâncias de fórmulas de compassos e de andamentos. Resumindo, estava defronte a páginas escritas por Mefistófeles com o sangue de jovens virgens alemãs.
Após alguns goles de água fresca e de exercícios de respiração, fixei-me no “alentador” pensamento de que teria toda uma 6ª feira para examinar o livro, praticar um pouco e, portanto, nada estava perdido.
• Madrugada de 6ª feira: pesadelos!
Sonhava com maestros, músicos e público, irados, acusando-me de alta heresia e me apontado a fogueira santa da inquisição, aonde já ardia a lenha que carbonizaria meu corpo, meu saxofone e minha incompetência.
• 6ª feira de manhã: impedimentos!
Compromissos inadiáveis impedem a minha dedicação ao trabalho nas partituras. Lá se vai uma manhã!
• 6ª feira à tarde: relaxando!
Após uma corridinha pela praia, seguida de um banho morno, sigo para o quarto, monto a estante e abro o livro, busco uma cadeira confortável, monto o saxofone e começo a praticar a peça, que deverá estar "na ponta dos cascos" na noite seguinte. Penso então no meu belo “gesto filantrópico” aceitando o trabalho e, penso também onde estaria o músico titular que me deu esta “chance” na Orquestra. Provavelmente estaria tocando em outro lugar, pelo quíntuplo do que me pagou, ou talvez se divertindo, muito bem acompanhado, em algum paraíso bem distante do Scala do Leblon. Sorte dele!
• 6ª feira à noite: dores!
Meus lábios começam a enrijecer e sinto formigamentos em toda a boca após cinco horas seguidas de sopros. O livro mal chegara à metade! Parada para um café e novos pensamentos rondam minha mente, a essa altura já um tanto confusa. Pela primeira vez penso em conseguir um substituto, agora pra mim! Pagaria o dobro! O quíntuplo! Mas quem?! Volto às partituras, mas logo após sou obrigado a parar devido ao “tratado de paz” que “assinei” com meus vizinhos. Nele, em seu primeiro parágrafo, assumo o compromisso de interromper toda e qualquer emissão sonora às 20h, em ponto.
• Madrugada de sábado: pesadelos!
Novos sonhos com maestros me perseguindo com suas batutas, pontiagudas e envenenadas, seguidos por trompetistas, cuspindo chumbo escaldante com seus instrumentos letais!
• Sábado de manhã: o dia D!
Amanhece o dia!
Tomo um rápido café e retorno ao quarto para praticar um pouco mais. Resolvo abrir o livro na página 1 (como são amigas as páginas 1) e me imagino sentado na Orquestra, pronto para iniciar o espetáculo, vestido com meu terno preto e minha gravata borboleta da mesma cor. Conto mentalmente: 1, 2, 3, 4 e início a minha parte.
Na terceira linha encaro os primeiros problemas. Disfarço e passo alguns compassos adiante, garbosamente. Na quinta linha mais problemas. Disfarço e pulo alguns compassos (ninguém percebeu!). Na segunda página surgem as primeiras gotas de suor. Gelado e escorregadio. Os problemas aumentam, impulsionados pelo nervosismo. Vejo o rosto de Mefisto! Perco o andamento! Não toco as primeiras semicolcheias! A situação começa a tornar-se crítica. O suor escorre pelos braços e se aloja na ponta dos dedos que começam a deslizar sobre as chaves do instrumento sem conseguir digitá-las! Sou um boneco de cera derretendo de pavor, dentro de uma orquestra, sob o olhar raivoso de um maestro que, em meio ao espetáculo, manda parar a orquestra, desculpa-se com o público e com Chico Recarey, chama um servente e pede que varra dali aquele terno preto, mergulhado em uma poça de cera! Ah! Por favor, entregue o saxofone aos familiares!
• Sábado à tarde: a decisão!
Completamente atordoado, decido não tocar à noite e começo então a pensar nas estratégias para resolução do problema:
a) Quebrar a própria mão, fechando a porta do carro sobre ela, e ir ao Scala mostrar a minha impossibilidade de tocar à noite;
b) Não quebrar a mão (doloroso!), mas engessar o braço, contando com a conivência de algum enfermeiro sensível à minha causa;
c) Simplesmente não aparecer no Scala;
d) Matar ficticiamente um parente e ir ao velório;
e) Sofrer um acidente de carro.
Enumerei outras tantas soluções “engenhosas” e no final escolhi uma. A mais surpreendente de todas: IR!
Iria uma hora antes do espetáculo, com o saxofone e o livro de partituras, e confessaria ao maestro que não conseguiria tocar, junto com a Orquestra, nem 20% do que estava escrito ali. Diria que tudo foi um mal entendido e que o saxofonista titular me superestimou, julgando que eu fosse hábil o suficiente para, em dois ou três dias, tocar todas aquelas milhares de notas ou então lê-las “de primeira vista”.
• Sábado à noite: a hora da verdade!
Estufei o peito, peguei todo o material e segui rumo ao Scala. Consciente de que era a única coisa decente a fazer. Afinal, quem era eu? Um homem ou um rato de gravata borboleta? Por que ter medo da verdade? O quê eu perderia com isso? Pedir desculpas por ter aceitado o trabalho e contar a verdade! Era isso!
Agora, me sentindo praticamente um herói, cheguei ao local, determinado e feliz. Me dirigi ao maestro e pedi para conversarmos. Nos sentamos em um sofá ao lado do palco. Após me anunciar como o saxofonista substituto, informei que não faria o show e afoguei sua perplexidade num oceano de argumentações irrefutáveis. Ele ouviu tudo calado, olhou bem nos meus olhos, pegou meu rabo de cavalo e por ele balançou minha cabeça lateralmente, como quem quisesse arrumar as coisas lá por dentro. Depois, paternalmente, expôs seus sentimentos: “Tu és um covarde!”. Apontando para os músicos que começavam a chegar e a sentar em suas estantes, falou ainda: “Tu sabes quantos desses aí tocam tudo o que está escrito? Nenhum! Só que eles pensam que me enganam!”. Em seguida insistiu para que eu ficasse e acompanhasse todo o espetáculo, dali mesmo do sofá, e que procurasse acompanhar tudo pelas partituras. Foi o que fiz e foi legal demais.
• Domingo de manhã: sentindo-se nas nuvens!
Acordei de bom humor e pensando no convite que o maestro me fez no final da noite anterior: ser membro efetivo da Orquestra! Confesso que me senti lisonjeado e até tentado a aceitar, mas preferi continuar a minha vida como ela era antes do telefonema de 4ª feira.
Hoje, guardo uma boa lembrança daquele dia. Do espetáculo, do maestro e da Orquestra mas, acima de tudo, agradeço à Deus por nunca mais ter sonhado com maestros e trompetistas e suas estranhas e poderosas armas letais, perseguindo um insone boneco de cera saxofonista!
Ah! O saxofonista titular nunca mais vi ou ouvi! Acho até que abandonou a música!
E, sinceramente, acho que antes de ter me ligado!