INQUIETAÇÕES ROXAS
Inquietante. Talvez seja este o adjetivo mais adequado ao filme A cor púrpura. Sua atmosfera densa provoca o espectador. Sua narrativa soa como um grito lancinante que desperta da letargia os indiferentes. Transporta-nos aos quilombos longínquos de nossos disfarçados preconceitos. Remete a uma análise profunda e nos coloca no divã de nossa consciência sexista.
Eu acreditava que os negros formavam uma irmandade pautada na igualdade. Que somente os senhores brancos violavam as mulheres negras e lhes roubavam os filhos. Que as senzalas haviam sido demolidas e que o açoite dera lugar ao diálogo. Inquietei-me. Fui violado nos meus conceitos de igualdade. O homem define o Homem. A humanidade é masculina. E o homem não define a mulher em si. Uma ordem visivelmente construída por e para homens. A mulher é uma esposa doméstica. Domesticada. Negra, pobre e mulher. Questionei. Revirei-me na poltrona. Vendo que a violência emana na própria família, poderia aventurar uma crítica desapiedada contra esta instituição. Mas o detalhe de que, salvo em escassas ocasiões, os opressores dos negros sejam da própria raça, recairia uma suspeita de ingenuidade sobre esta leitura.
Moral e ética se confundem num contorno de concepções essencialistas, naturalistas e atemporais. Concebem a mulher naturalmente para o mundo privado em função de sua essência que, como tal, sempre foi assim e não mudará. Poderia assumir-se como ontológico o segundo lugar para a mulher a partir da verificação social que adquire esse status feminino? Não. O consenso social não garante a ausência de efeitos particularistas.
Um blues. Um beijo. Não um beijo qualquer. Não um beijo lésbico. Ou talvez sim. Refiro-me a que não é simplesmente um beijo entre mulheres. É o ósculo que leva a protagonista principal a assumir pela primeira vez o futuro em meio à cerração do imaginário social em que jaz quase sem vida. Um beijo-túnel. Um beijo que transporta. Uma entrega entre erótica e mística, em absoluta comunhão. Não uma mudança de lugar. É uma afirmação. Não será um não-homem. Não será um homem. Não é a negação do patriarcado. É o positivo da feminilidade. Uma mulher que se pronuncia. Anos de silêncio rompidos por um beijo.
Encontro que conduzirá à materialização do traço próprio. Não é propriedade do homem. Tampouco é uma fuga covarde do universo masculino. É uma ampliação do mesmo. Não se propõe uma legalidade varonil ou sua negação. Transcende essa lógica, propondo uma afirmação masculina. Um “eu sou”. A partir de então a mulher reverbera, florescendo seus desejos ao mundo de palavra viril. Desenvolverá um oficio e um modo de viver com caligrafia própria.
Excitei-me. Desaforadamente Mr. Spielberg entregou-me um certificado de significações produtoras de subjetividades de gênero. Mostrou-me um pai terrível. Um padrasto. Dono de sua mulher e de suas filhas. E também dono de seus filhos com sua filha. História que se repete de mulher em mulher. Sofia confessa que sempre teve que brigar. Teve necessidade de lutar em casa e se defender de seus tios e de seus irmãos. Uma mulher entre os homens jamais estará segura.
Fiquei roxo de indignação. Repudiei o sexismo. As questões de gênero não são sectárias, dizem respeito a todas e a todos. Raramente se olha além da diferença de sexos, ou seja, dificilmente se procede a uma análise de papeis e relações sociais.