MEU AMIGO DO CÂNCER
Para Felipe (em memória)
Terça-feira chuvosa e fria depois da véspera quente e abafada. Telefono para minha namorada. A funcionária que trabalha com ela informa-me que saiu ao velório. Quase uma hora depois, voz embargada: - Meu amiguinho do câncer faleceu. O enterro tinha acabado de acontecer.
Recordei-me de outro telefonema, meses atrás, antes de iniciar suas aulas. Indagara-me se iria a Assis na manhã seguinte. Ainda tinha conta na livraria? Antes de qualquer resposta, começou a chorar. Contou-me do encontro com a amiga que não via há alguns anos. Conversaram, sorriram, recordaram-se de fatos marcantes. Talvez o fato mais marcante – não do passado, mas da atualidade: o filho da amiga. Numa idade em que muitos meninos aprontam traquinagens, incomodam os pais, azucrinam os adultos e usufruem da bondade inigualável dos avós, o filho da amiga descobrira câncer. Lutava contra a doença que o impedia de jogar bola, de pular cerca, de roubar goiabas, de dirigir bicicleta, de entrar em brigas de escolas...
Compreendi seu choro, entretanto não entendi por que desejava saber se iria à livraria.
- Queria comprar um livro para ele. Já que não pode sair de casa e gosta de ler, acho que poderíamos dar um livro de presente.
Por volta das dez e meia da manhã seguinte entrei na livraria para pegar uma encomenda e perguntei a Maria Helena se poderia me indicar algumas obras infantis, provavelmente para uma criança entre nove e onze anos. Ágil, interessante e fluente. Que prendesse a atenção do leitor-mirim. Maria Helena disse-me que o “Diário de um banana” estava com boa saída. Peguei os dois primeiros dos quatro livros. Entreguei-os a minha namorada para que, na primeira oportunidade, presenteasse o amiguinho. Assim que terminasse de lê-los, poderia solicitar os dois remanescentes.
Semanas depois, disse-me que o menino já lera os dois volumes e, com grande alegria – sempre me alegro quando alguém foi fisgado pela Literatura, recorri à livraria para pegar os títulos que encerravam a coleção.
Por uma dessas singulares justificativas que apenas a Literatura pode nos oferecer, lembrei-me de uma história de Moacyr Scliar. Mathias descobrira leucemia em estágio avançado. Os pais gostariam de levá-lo ao parque de diversões para que se divertisse na casa dos monstros. Mas, levá-lo ao parque poderia comprometer definitivamente sua saúde. Daí um amigo, pegando dinheiro emprestado do pai de Mathias, compra o material necessário para construir um castelo dos horrores. Consegue um carro de supermercado, coloca Mathias dentro dele e dispara pelos corredores da casa. De um quarto sai a mãe ensangüentada de extrato de tomate, o pai é um “enforcado” no banheiro, uma das irmãs cospe fogo na cozinha... Mathias grita, berra, se apavora, se diverte, se delicia. Ao fim da brincadeira, os pais choram de felicidade. Dali a meses Mathias morre. O narrador conclui: ele, o narrador, nunca mais foi ao parque de diversões.
Como disse ao início, o amiguinho de minha namorada faleceu numa terça-feira chuvosa. Na segunda-feira, tinha feito um calor intenso. Talvez Deus, sabendo que precisava de mais diversão nos céus, procurasse alguém versado em Literatura. Olhou para o amiguinho de minha namorada: - Vem cá!
Estranhei a chuva intensa na terça-feira, porém descobri com facilidade o motivo: Deus ainda não criou encanamentos necessários para escoamento de modo que, toda vez que o amiguinho da minha namorada, certamente empurrado por Mathias, desliza pelas piscinas, cai pelos escorregadores do parque aquático ou salta dos trampolins, a água explode pelas nuvens e nos banha.
Um dia me disseram que as chuvas eram lágrimas dos que sentiam saudades dos filhos, dos pais, dos netos... As chuvas são as águas que vazam das piscinas onde o amiguinho de minha namorada e Mathias brincam, estimulados pelo olhar benevolente de Moacyr Scliar.
*Publicado originalmente no jornal Cidade 10 (Maracaí – SP) de 12 de agosto de 2011.