Quem não trabalha não pode viver

O texto que eu reproduzo a seguir é uma composição que foi publicada no suplemento infantil do jornal Folha de Minas, de Belo Horizonte, em 28 de maio de 1944. Foi escrita por um garoto de 10 anos, estudante do município de Rio Casca – MG:

O valor do trabalho

/ O trabalho dignifica o homem. Havia em uma cidade um casal que tinha dois filhos. O mais velho tinha oito anos e chamava-se José, o mais novo tinha sete e chamava-se Pedro.

José era muito desobediente e preguiçoso, não queria trabalhar; o pai mandava-o para a escola e ele ia jogar bola com os outros meninos vadios. Era muito vadio, brigador, bebia, fumava, jogava e fazia muita coisa feia.

Pedro era um menino bom, obediente: o pai mandava-o para a escola e ele ia direitinho. Quando terminava as aulas ele voltava diretamente para a casa. Era um menino sincero, alegre, estudioso e muito aplicado.

Nisso foram crescendo.

José tornou-se um ladrão, porque não queria trabalhar, e Pedro tornou-se, pelo contrário, um homem distinto, muito estimado, e enriqueceu-se por meio de seu trabalho.

José um dia foi roubar uma fazenda, o fazendeiro acordou e deu-lhe um tiro que foi certeiro: caiu estendido no chão morto.

Quando Pedro soube do que havia acontecido ficou muito aborrecido com a morte de seu irmão.

Quem não trabalha não pode viver, pois o trabalho dignifica o homem. * /

Essa composição foi escrita em um contexto político marcado pela valorização do trabalho, durante a ditadura do Estado Novo (1937-1945), de Getúlio Vargas, que tinha no governo de Minas Gerais um de seus mais fiéis seguidores: Benedito Valadares. Naquela época, o projeto desenvolvimentista do governo incluía um programa de conscientização popular sobre o valor do trabalho, já que o país não poderia crescer sem que o povo (pobre) trabalhasse intensamente, em troca de um salário mínimo, nas fábricas, comércios e outros serviços que surgiam no Brasil nos anos 30 e 40.

Naquele contexto, as escolas públicas primárias tiveram um papel muito importante, pois nelas o governo disseminava, desde a infância do cidadão, a ideologia do trabalho, através de concursos de composições, desenhos, poesias e peças de teatro, além das intensas comemorações que ocorriam nas semanas que antecediam o Dia do Trabalho, com desfiles, fanfarras, discursos e filminhos sobre o presidente Vargas e a importância do trabalho, da família, da religião, etc.

O que eu gostaria de discutir, com base nesse longo preâmbulo, é justamente essa ideia de que “o trabalho dignifica o homem”. Pode até ser verdade para muita gente (até para a maioria das pessoas no mundo), mas acho que não devemos perder de vista o fato de que essa frase é fruto de uma construção ideológica carregada de interesses econômicos e políticos nem sempre evidentes. E eu pergunto: Como os capitalistas podem se enriquecer (e enriquecer o Estado) sem os pobres para realizar aqueles trabalhos que nenhum rico quer fazer? Será que é digno levantar às cinco da manhã, pegar 2 ou 3 ônibus, entrar numa indústria e realizar o mesmo trabalho mecânico durante 8 horas por dia, para só pisar em casa de novo às oito da noite, morto de cansaço, para no outro dia fazer a mesma coisa, e depois a mesma coisa, até morrer? Alguns podem me questionar: “Mas esse trabalhador pode tentar outro emprego, procurar crescer, estudar e ir à luta para mudar a sua condição”. E eu responderia: “Um ou outro pode até conseguir, mas a maioria, a meu ver, não encontra outra saída: é aquilo mesmo até morrer”.

No Brasil, o governo Vargas se empenhou muito na construção dessa imagem positiva do trabalho, que, sobretudo na cultura popular, acabou encontrando um espaço perfeito para se reproduzir. Eu mesmo me lembro, quando garoto (com 11 ou 12 anos), que eu tinha vergonha de dizer para os outros que eu “só estudava”. Meu avô contava que meu pai havia começado a trabalhar cedo, com 10 anos, na venda da família, entregando mercadorias de bicicleta pela cidade, e ele dizia isso com orgulho (e meu pai também se orgulhava muito disso). E contava também, rindo até não poder mais, que meu bisavô uma vez olhou bravo para uma de minhas tias (de vinte e poucos anos) e mandou-a fazer doce para colocar na venda, para ajudar em casa; e que ela respondeu: “Mas vô, eu trabalho a semana inteira, sou professora”. E ele: “É pouco. Dá pra fazer uns doces no domingo e ajudar mais seu pai e sua mãe”. E quantas vezes a gente já ouviu falar que “fulano é bom: é trabalhador”; que “aquele casamento vai dar certo, porque o rapaz é muito trabalhador”; ou que “ele é meio bruto com a esposa, mas é trabalhador e não deixa faltar nada dentro de casa.”?

Para mim, trabalhar não é natural (não está na natureza do ser humano). Talvez estejamos caminhando na direção de uma adaptação (darwinista?) para o trabalho, mas acho que ainda é cedo para afirmar que o processo está concluído (se é que ele pode se concluir). Alguns seres humanos são privilegiados: fazem o que realmente gostam. A maioria, no entanto, para mim, apenas se acostuma com o trabalho, sem gostar dele (amparada pela ideologia, que neutraliza os desejos), ou simplesmente acha que gosta, de tão acostumada que está.

“Quem não trabalha não pode viver”, disse o garoto da composição em 1944.

O que você pensa disso?

* Luis Aristides Leite de Castro – 10 anos – Santo Antônio da Grama – Município de Rio Casca (Folha de Minas, p. 7, 28 de maio de 1944). Documento citado por VAZ, Aline Choucair. Educar a Pátria para o Labor: O Dia do Trabalho no ensino primário de Minas Gerais (1937-1945). In: VAGO, Tarcísio Mauro & OLIVEIRA, Bernardo Jefferson de. Histórias de Práticas Educativas. Belo Horizonte, editora UFMG, 2008, pp. 353-377.