OS PÉS DE DONA AGRIPINA
Todos corríamos pela sala, excitados. Ríamos sem sabermos bem o motivo, só pela vontade única de sermos felizes. Quando a professora chegou, o burburinho custou a desfazer-se, até que nossas almas frágeis se acomodassem nos corpos agitados. Ela parecia mais severa do que de costume, mas de uma seriedade estranha, como se alguma coisa terrível houvesse acontecido. Os cabelos escondidos atrás de um lenço colorido, amarrado no pescoço. Os óculos pesados, embaçados, manuseados várias vezes, na tentativa de limpá-los. Um certo vermelho nos olhos, parecendo conjuntivite. Mas não demos muita importância. Estávamos demasiadamente felizes para nos preocuparmos com a fisionomia de Dona Glória. Ficou quieta, parada a um canto da sala, talvez esperando o momento certo para dar a notícia. Mas que notícia seria tão importante a ponto de nos fazer cúmplices de sua angústia. Alguém gritou do fundo da aula, quase em desafio, perguntando se não teríamos aula, ao que ela, talvez aproveitando a brecha, rapidamente, respondeu que ele estava certo. Não teríamos aula porque Dona Agripina, a benemérita e devotada às causas mais nobres da comunidade, havia morrido. Na verdade, nem a conhecíamos muito bem. Ouvíamos falar dela, sem qualquer deferência que a qualificasse ante a tantas outras pessoas consideradas importantes pela paróquia. Estudar naquela escola religiosa era participar ativamente da comunidade, mas não para nós, encantados que estávamos com a vida que se desenrolava dentro de nossa imaginação, sentimentos novos, fragmentados, vontade de viver, sem refletir exatamente o que significavam todos os demais acontecimentos que não se coadunavam com nossos objetivos, que estavam egoisticamente ligados ao nosso prazer. A turma silenciou, colaborando ingenuamente com a professora. Aí se sucedeu uma etapa nova, principalmente em minha vida. Fez-se uma fila e nos dirigimos à igreja, que ficava ao lado do pátio, juntamente à escola. Já o silêncio dera lugar aos rumores, cada um falando o que lhe vinha à mente, que lhe aprouvesse, tentando atrasar ao máximo os pensamentos tristes. Eu estava acabrunhado. Mexia no cabelo rebelde, que meio crespo, caía-me aos olhos. Fungava e vez que outra, dava uns espirros que me arrepiavam os pelos ralos dos braços. A professora pedia silêncio, compungida. Entramos na igreja e ficamos meio esparsos, entre as pessoas, certamente parentes e outros amigos, que se acotovelavam na fila, entrando rápidos, querendo avistar o que eu insistia em não ver. Fiquei quieto, entre os colegas, que conversavam, rindo, aproveitando a barafunda da entrada. Dona Glória insistiu no silêncio, desta vez irritada, com um olhar duro. Eu percebi que seus olhos estavam vermelhos e que ela escondia uma lágrima que iluminava ainda mais o seu olhar. Silenciavam, mas por pouco tempo. Logo voltavam às conversas ordinárias, preocupados em que estavam com o que fariam após saírem da missa, com o filme da tv, o jogo de futebol, as corridas de bicicleta. Pra mim, não havia estas preocupações, pois tudo se nublava ante meus olhos, que somente os levantava por absoluta curiosidade. E só avistava os pés de Dona Agripina, sapatos que brilhavam, voltados para a saída da igreja, dividindo o corredor. A missa parecia interminável e eu não conseguia afastar o olhar daqueles sapatos bem lustrados, enfeitados por rendas, sinalizando a saída que parecia longa demais, quase eterna. Pés que ficavam na minha memória, que se altercavam em meus pensamentos angustiados, que abrangiam um sentimento mais profundo, envoltos que estavam em aflição e medo. Não entendia muito bem o que acontecia comigo, mas aqueles símbolos mexiam com minha estabilidade emocional. A tampa do caixão, encostada na parede, com uma cruz dourada em alto relevo, aqueles mulheres de preto fazendo coros de choro intermitente, o cheiro das velas, os paramentos fúnebres, as frases diferentes do ritual, onde se falava constantemente em descanso eterno. E os pés de Dona Agripina, que apontavam inertes, fortes, mensageiros de uma saída para o nunca, um lugar que eu teimava em desconhecer. Acho que naquele dia, eu realmente tive a consciência da morte. Todo o dia ensolarado ficou nublado e insosso. O jogo com os amigos, o passeio de bicicleta, a chegada em casa, numa rotina que agora perdera subitamente a graça, era um presságio de que as coisas mudaram e que eu, aos sete anos, acordara para a vida. Ou para a morte. Os pés de Dona Agripina foram os culpados.