De marré deci

Em seu extraordinário romance “Lições de abismo” (1950), Gustavo Corção leva seu personagem principal a um café, onde, atrás do balcão, “um rapaz e três moças multiplicavam os mesmos gestos rápidos, distribuindo louça, servindo café, recolhendo as fichas, e retirando para um enorme caldeirão de água fervendo as xícaras usadas”. Uma das moças atrai a atenção do personagem, um professor de meia idade que acaba de descobrir que tem um câncer incurável, e mostra-lhe, com seu corpo franzino (“o peito vazio, a cinturinha quebrada, e os braços chupados”), que ela não viverá muito tempo.“Não posso dizer se sua doença é tuberculose ou câncer. Faltam-me as estatísticas, as observações repetidas. Mas sei que é de morte. Vejo-a murchar”, conta-nos o angustiado professor em sua narrativa.

Mas a sua reflexão logo se volta para o “humilhante ofício” daquela flor desenganada. “Ofício de quê? Que nome terá esse ofício de ficar oito horas em pé a distribuir xícaras com gestos de autômato? Creio que não tem nome”.

Recorda-se da época em que todos os ofícios tinham nome, e as meninas cantadeiras cantavam nas noites de verão:

Eu sou pobre, pobre, pobre,

De marré, marré, marré,

Eu sou pobre, pobre, pobre,

De marré, deci...

Quero uma de vossas filhas,

De marré, marré, marré,

Quero uma de vossas filhas,

De marré, deci...

Que ofício darás a ela?

De marré, marré, marré

Dou ofício de costureira,

De marré, deci...

“Como poderíamos pôr em canto de roda a longa especificação deste ofício sem nome: moça que distribui as xícaras no café em pé, de marré, marré, marré? Mas se não tem nome a profissão, tem nome, nítido e rígido, a classificação. Seu instituto tem nome, se seu ofício não tem. Ela é comerciária, de marré, deci”.

Quantas xícaras ela serve por dia? “Calculemos: três ou quatro por minuto, vezes sessenta, vezes sete ou oito; digamos sete. Dá mil cento e oitenta; digamos mil. Ela serve mil fregueses por dia!”.

Abuso aqui do fascinante texto de Gustavo Corção para expressar, mais uma vez, a minha perturbação indignada e impotente diante do destino de uma grande parcela da população mundial: daqueles homens e mulheres que passam a maior parte do seu tempo de vida trabalhando em algo de que não gostam, esperando ansiosos a passagem das horas, até o final do expediente; dando graças a Deus pela chegada da sexta-feira (e amaldiçoando a segunda-feira tenebrosa); contando os dias para a chegada do feriado prolongado, do Carnaval, da Semana Santa, das férias; trabalhando sem motivação, por necessidade, porque não há outra saída, não pode ser de outro jeito, a vida é assim... Pessoas anestesiadas, submissas a uma realidade que domina, com seu tédio mortal, suas almas indefesas, que não sabem o que fazer, a não ser se resignarem, esperando, talvez, uma recompensa futura: uma boa aposentadoria aos 65 anos de idade, com um pouco de saúde para curtir os últimos anos de existência; a vida eterna no Céu... Quem sabe?

Quantos no mundo não se sentem como a moça das xícaras do romance de Corção, quando um freguês lhe grita: “Esta xícara está suja! Veja!” Ela não olha para a xícara. Não olha para o freguês. “Porque se olhar, enlouquece. É a sua defesa. A sua única defesa. Ela não pode prestar atenção ao que faz. Se prestar, enlouquece. Não é possível ter solicitude igual mil vezes por dia; não é possível ter interesse nesse jogo. Por isso ela faz como se atendesse fantasmas. Sombras. Ela olha através; põe os olhos no infinito, deixando às mãos sonâmbulas o cuidado de distribuir louça, colher fichas e retirar as xícaras usadas”.

Mas há também executivos, empresários, professores universitários, engenheiros, advogados, médicos e muitos outros profissionais de marré deci. Não é preciso ser pobre para viver uma existência de marré, marré, marré. Inúmeras pessoas consideradas bem sucedidas vivem suas vidas afastadas daquilo que realmente querem, porque precisam ser “realistas”, “seguras”, “prudentes”, “responsáveis”, “honradas”, “respeitadas”. Fazem “o que deve ser feito”, “o que é preciso”, sacrificando um tempo que não volta nunca mais em projetos de vida vazios daquilo que, para elas, representaria o verdadeiro prazer de viver. Muitos profissionais acumulam fortunas, passando pela vida como meros espectadores. Velhos e ricos, depois de anos de trabalho, muitos tentam resgatar suas verdadeiras paixões, seus sonhos de juventude não concretizados, mas já é tarde, pois o tempo perdido não volta mais.

Carlos Drummond de Andrade já dizia, em seu poema “A casa do tempo perdido”:

Bati no portão do tempo perdido, ninguém atendeu.

Bati segunda vez e mais outra e mais outra.

Resposta nenhuma.

A casa do tempo perdido está coberta de hera

pela metade; a outra metade são cinzas.

Casa onde não mora ninguém, e eu batendo e chamando pela dor de chamar e não ser escutado.

Simplesmente bater. O eco devolve minha

ânsia de entreabrir esses paços gelados.

A noite e o dia se confundem no esperar,

no bater e bater.

O tempo perdido certamente não existe.

É o casarão vazio e condenado.

A moça das xícaras não terá tempo de viver, conta-nos o narrador do romance de Corção: “Não viveu, e já morre. Não sabe, como eu, que vai morrer. Não poderá arrumar a sua morte. Morrerá uma morte qualquer, de comerciária, de marré deci. Vejo um hospital. Um leito qualquer, número tanto. Uma vaga arranjada por favor. Ela agoniza – e as xícaras, os cafés, as fichas, os clientes iracundos, os clientes joviais, os clientes em geral de que se defendeu pondo os olhos vagos no infinito, voltarão todos, virão, de dentro dela, em ondas, acumulados, milhares, milhões, virão encher de alarido vulgar, de vozes e de louças, seus últimos instantes de menina que não teve licença de viver. Ela morrerá vendo xícaras, xícaras, xícaras. Os aventais passarão. Toucas. Clientes esquisitos debruçam-se sobre o seu corpo, como se ela tivesse virado xícara, e viessem beber nela mesma, nas suas entranhas, o último café”.