O MEU AMOR...
A movimentação era a de rotina, entre a sonoplastia das buzinas e motores do farto trânsito de Sampa e, embora inverno, o sol pontuava a sua beleza brilhante e quente pelos faróis da cidade.
Foi quando percebi uma musicalidade lá fora a se confundir com a música que tocava no meu rádio. Então o desliguei para discerni-la melhor.
Não era um som comum.
Suas notas tinham um timbre arrojado que destoava da mesmice opressora dos semáforos da cidade, de pressa e de medos corriqueiros, notas que viajavam pelo ar seco como se procurassem respirar pelo espetáculo dum pôr-de -sol numa afastada e despoluida praia, erma e silenciosa.
Por alguns minutos senti meu espírito viajar e então desfrutei da beleza do que via...do que ouvia...e sentia...
Ali, alinhado à faixa de pedestre que delimitava o tráfego parado para os transeuntes, um artista de rua elegantemente bem postado segurava seu "Sax" a nos presentear com uma conhecida melodia do Chico.
Tocava com MAESTRIA e sentimento, como se naquele momento todos os amores do mundo por ali passassem, respeitados pelo aguardo dos automóveis parados que mais me pareciam também hipnotizados pela beleza daquela arte.
Instintivamente cantarolei a melodia..."o meu amor tem um jeito...manso...que é só seu...".
Voltei ao tempo dentro do que nos permite a nossa memória musical.
Talvez ali se redesenhasse, a céu aberto, uma legitima ópera em repúdio a toda a malandragem da cidade, muito diferente daquela obra "ópera do malandro" do Chico dos anos setenta ,porque sei que mesmo a imensa marginalidade de hoje daria uma trégua frente à tão bela apresentação de tão exímio artista.
Cena figurativa que nos faz pensar. Difícil entender o porquê o palco de certas artes ainda tem que ser as ruas...
A ópera não durou mais que dois minutos, tempo suficiente para o semáforo abrir e eu ali lamentar minha impossibilidade de aquele show reverenciar com aplausos efusivos.
-Bravo! Bravíssimo!
Então, no meu íntimo silêncio, resolvi aqui descrever, porque não me resta outro instrumento para registrar, aplaudir e homenagear a tamanha sensibilidade artística que hoje pude presenciar num dos mais violentos semáforos da minha cidade.
Oxalá possa essa minha pequena homenagem um dia chegar àquele anônimo coração de artista.