DE VOLTA AO PASSADO II
Deixando a fronteira norte da Espanha, chegamos à pequena cidade francesa de Hendaye. Não passava das 23:00 h.
Felizmente, tranqüilizei-me. A recepcionista da estação, fluente, falava português tão bem ou melhor que a gente.
Curiosamente, alheio à nossa ignorância, no adro de uma de suas igrejas, ergue-se a famosa Cruz de Hendaye, monumento de vários séculos, que, segundo Fulcanelli, alquimista que viveu no século passado, a cruz contém segredos e aviso sobre o final da presente era. (Consta haver uma similar em Cuzco, no Peru, de construção e procedência ignorada.)
Uma pena não podermos conhecê-la; outro trem nos aguardava para a conexão. Prosseguimos nele.
Chegamos à gare de Austerlitz, Paris, bem cedinho. Confesso grande apreensão pelo movimento. Centenas e centenas de rostos desconhecidos e, em volta, Maria Luiza arrastava uma das malas demonstrando claramente sua aparência mista de cansaço e insegurança. Mas ali nada tínhamos a fazer a não ser seguirmos em direção à gare de Lion. Foi o que fizemos. Pelo caminho, entre as duas gares, há o Sena. Sobre a ponte do inspirador rio, nos detemos, e mesmo com os inconvenientes de arrastar as malas, apreciamos embevecidos o panorama mágico do lugar. Vinha, dali, séculos de um passado longínquo que evocavam lembranças; vozes que eu não sabia de quem, nem de onde vinham suscitavam, em nós, sentimentos de bem estar e agradecimentos. Contudo, urgia prosseguir.
A gare de Lion não distava longe. Assim que a adentramos, desinformados e cansados, um raio de ânimo me iluminou; junto de um balcão à frente, indiquei a companheira a placa de “informações”. Disposto tomei a outra mala no chão, ajeitei a mochila na costa e encaminhamos resolutos para lá.
De antemão, sabia da ojeriza que os parisienses nutrem pelos turistas; segundo eles, os visitantes lhes infestam e infernizam a cidade; no entanto não tínhamos alternativa.
Confirmou-se conosco o que já se sabia. Nem se deu ao trabalho de olhar-me; da mesma forma que carimbava certas fichas permaneceu atento ao seu trabalho maquinal, embora respondesse algo que eu entendi como se ele não falasse português e mal o espanhol. Tentei continuar mas o cidadão francês levantou o rosto reprovando-me; exibia nitidamente sua fria indiferença. E, tomado de súbito, levantou-se e encaminhou para o interior da instalação.
Abatidos, sentamos ao lado com o intuito de pensar a situação ao tempo que pudéssemos descansar da viagem noturna. Maria Luiza agora se mostrava visívelmente bem abatida.
Viajávamos sem reservas de hotel; logo, a premência naquele momento consistia ter informação para isso, um hotel compatível com a nossa situação financeira atual, transporte etc.
Certamente ouvi essa pretensão de um bêbado. Só pode. Disse-me ele uma verdade tão óbvia e natural que Deus a tudo olha e protege; porém, salientava, há duas coisas em que o Criador mantém os olhos bem abertos sosbre eles: bêbados e cachorros!
Bêbados, vá lá, --- vindo de quem vinha a proposição --- , mas cachorros? ...Fiquei por entender.
Entretanto, o que eu devia entender a seguir e, prontamente, era acrescentar à lista do bêbado: “viajantes incautos”. Por qualquer boa razão Deus também estava a olhar para eles.
Em meio ao cansaço e a decepção encontrava-me confuso pelo sono que chegava embora percebesse o sinal do homem da "informações". Estendia a mão espalmada em nossa direção, aparentando empurrar alguma coisa invisível no ar; naturalmente que esperássemos ali. Abatido pela situação, também contrariado com a recepção que nos dera não levei fé naquilo. Não procurei esclarecimentos, pois os sabia impossíveis comunicá-los. Permaneci sentado, cansado, contrariado, pressentindo os sentimentos da auto-piedade. E assim, a caminho de fechar os olhos chegou o português.
Apresentou-nos um rapaz apessoado, dizendo ser de Lisboa e funcionário local. Sem rodeios, confortou-nos ouvi-lo dizer que nas imediações da gare encontraríamos o que procurávamos. “Bem aqui ao lado, não é preciso nem recorrer aos táxis... o Sr. poderá ir à pé mesmo”. Inclusive nos indicou o Normandie.
A título de cordialidade, nos fez ainda outras recomendações e sugestões.
Estávamos, finalmente, instalados no Normandie, próximo da praça da Bastilha, estrategicamente localizado nas imediações de serviços capazes de garantir nossas pretensões.
Considerando, o bom lusitano nos botou Paris nas mãos!
Enquanto isso queríamos apenas e tão somente dormir.
A alta vida cultural de Paris, as intensas opções de vida regadas ao luxo da cidade, logicamente estavam distantes das pretensões e das condições de dois turistas suburbanos despreparados para vivê-las. De forma que contentamos, --- e com que alegria, --- em visitar os museus, a torre, as igrejas, as praças com seus monumentos e histórias, caminhar ao longo do Sena apreciando sua beleza e navegação. Também ao longo do rio observar os pintores no momento de suas criações, os literatos buscando inspiração e os cartazes de espetáculos evocando décadas passadas, vivendo e revivendo intensamente anos e anos em tão fugaz momento!
Certo dia da estada, de comum acordo, optamos por caminhar pela Champs Élisees; ver as vitrines das lojas de grife, casas de espetáculos, o Arco do Triunfo, os belos e trabalhados jardins, o vai-e-vem da babel de pessoas, até determos num bosque de plátanos ao lado. A tarde amena ensejava a calma e avivava as cores. Pombos arrulhavam à nossa volta buscando as migalhas de pão que lhes atirávamos.
Ao meu lado, a companheira de 34 anos juntos; ambos nascidos nos ermos do interior do Brasil, o que fazíamos naquele ôco de mundo, meu Deus?
Atirei mais algumas migalhas aos pombos enquanto me perguntava:
“Será isso verdade?”...
Visitando a tantos lugares prazerosos nos cinco dias de estadia, tínhamos de encerrar o passeio indo a um restaurante melhor, conhecer da famosa e tradicional culinária francesa, embora me moesse a vontade de comer um trivial, um doméstico arroz com feijão! Paciência.
Cadeiras e mesas pela calçada, a parte refinada ficava na parte interna. Assim que assentamos o garçom nos convidou a tomar assento noutra mesa; não éramos fumantes. Uma fileira de variadas taças compunha a mesa juntamente com dois enormes pratos de porcelana de cada lado; guarnecia-os pesados talheres que imaginei tratar-se de peças de prata; guardanapos que, a bem da verdade, poderiam servir também como forros de pequenas mesas.
Vieram os menus. Li-o, reli-o. Olhei para Maria Luiza na intenção de vê-la decidida, mas nada. Pelo visto não decidiria. Os pedidos seriam meus.
Dos diversos constantes, pude identificar dois familiares: scargot e salmon.
A lhe explicar que scargot... atalhou-me decidida: “Aquela coisa que parece com lesma?... Como podem comer isso!”
Ficamos com o salmão; ela não come carnes vermelhas.
Pedimos o peixe e duas cervejas que bebíamos embevecidos com o ambiente e os transeuntes lá fora.
O tempo de meia hora se foi alongado pela ansiedade e pela fome; nisso, alguém se aproximou empurrando um carrinho todo rendado, encimado por duas baixelas luzidias. Era o bendito salmão.
O que a princípio era entusiasmo, esvaneceu-se em decepção: no prato, um montinho de talharim sobre um molho brilhante de gordura, sustentando decepcionante fatia de salmão grelhado. Acompanhava, para consolo, um cesto com pães carequinha e manteiga de leite. Tratar-se-ia de uma entrada para garantir os 18 euros?
Qual nada! Após esperar e frustrar-nos com a demora, pedi outra cerveja na qual Maria Luiza não me acompanhou. Bebi-a rapidamente e pedi a conta.
Cerimoniosamente, o garçom passou-me a bandejinha com o pedido.
49,75 euros!
“Meu Deus! Uma cerveja 4,50 euros! No Brasil é o preço de uma caixa de Skol!” O pobre garçom parecia não entender nada da minha odiosa indignação. Também pudera, afinal, deblaterava o preço da curiosidade pelo mito da cozinha francesa e da relação de custos entre a sua realidade e a vivida por nós no Brasil, coisa que certamente passava longe do seu entendimento.
Não me perturbei. Fiz questão de esperar pelo troco, 0,25 centavos de euro!
Ao nosso lado, uma senhora idosa retirava ostras de certo balde inox ladeado por cubos de gelo, as quais, após abrir-lhes a couraça com a faca, chupava o interior daquilo com tamanho deleite e prazer que me encabulava; sorvia, em seguida, um gole de vinho tinto misturado pouco antes ao branco e retomava ao ato anterior. Olhei para o insólito quadro por um tempo e, segurando a moedinha, conformei-me. Mas o arroz com feijão ainda teimava atiçar o meu desejo.
Já no aeroporto, dono de melhor juízo, relembramos esses fatos com gosto e foi divertido lembrar que reconheci ter pago o peixe, o pato e o mico!
“Arrivederci, Paris!... Arrivederci no, stupido! Cadê o raio desse francês, gente?...Adieu, Paris! Agora, sim!”