UMA GAROTA NO BANCO DO TEMPO

Eu já estava sentada ali há um bom tempo, contrariando todas as regras da recente lei que rege o atendimento aos clientes das instituições bancárias, a pacientemente esperar pela minha vez bem em frente à sua mesa de trabalho.

Não sei pontuar o tempo que decorreu ali desde que minha atenção se dispersou para fixar-me no apelo do invisível que passara a nortear a minha observação e o meu pensamento.

Ela me instigava a atenção pelo seu incrível todo.

Vestida numa tendência da moda, trazia a roupa justíssima e preta detalhada na informação de padronagem "oncinha" , repetida no malabarismo dos sapatos de saltos finos e altos, no cinto que torneava um abdomen já protuso pelo tempo e numa tiara que coroava uma rala cabeleira quase a roçar sua cintura, esticada por "chapinha" e tingida de acajú claro.

Suas pernas ainda torneadas se evidenciavam por meias finas e negras, com listas verticais de veludo mais escuro a brigarem com o forte padrão informado pelos seus pés, cujos tornozelos inchados muito se esforçavam na caminhada para sustentarem o sobrepeso da sua escultura corporal bem além da meia idade.

Todos os seus demais extravagantes acessórios cintilavam num brilho de cristal reluzente sob as luzes brancas.

Suas unhas eram caprichosamente esmaltadas por verniz rubro escuro e impressionavam pelo comprimento quase a lhe impedir que deslizasse pela digitação do teclado.

Seus olhos, nitidamente presbíopes, com certo esforço fixavam a tela do computador através das lentes ancoradas numa armação floral de cor pink, que deixavam em evidência seus cílios postiços numa fisionomia dura e hermeticamente redesenhada pelas técnicas mais modernas de preenchimento da face.

As sobrancelhas tatuadas refaziam a escassez dos pelos levados pelo tempo e o restante da pesada maquiagem arrematava o todo da sua tentativa caricata de a ele voltar..

Retornei a mim quando ela me chamou trejeitadamente num timbre um tanto falsete: "pois não, senhora, em que posso ajudar?".

Senti que tentava me deixar claro que o tempo havia passado...apenas para mim.

Talvez eu também pudesse ajudá-la.

Saí dali pensativa, plenamente decidida a aceitar o meu também chegado tempo, a jurar fidelidade a todos os meus demais e futuros tempos, consciente de já ter suficientemente vivido para a constatação de que nunca somos o que já fomos um dia.

Entrei no meu automóvel e, ainda pensativa, meio assustada, julguei prudente me analisar pelo retrovisor.

Franzi meus olhos e abençoei algumas naturais rugas a já emoldurarem o meu entorno vivo e verdadeiro.

Prometi a cada uma delas lhes permitir seu espaço de direito pelo tempo.

Então, sorri para mim mesma decidida a partir o meu motor rumo ao futuro da minha mais genuína identidade, aquela que traça meu intrínseco universo vivido, marcas que tempo algum leva e que nenhuma maquiagem apaga.

Para o meu grande alívio...