DDD - Diário de Derrotas [11]

Já usei todos os meus recursos pra cair no sono e nada. Nem o meu favorito - ficar me imaginando como personagem do Dragon Ball Z e jogar carros nas pessoas - deu certo. Parece filha da putice do meu corpo: ficar com essa ansiedade/insônia bem na madrugada da segunda-feira, sendo que passei os últimos quatro dias na cama, cheio de todo o sono do mundo. Pior é que ela, aqui do meu lado, fica se achando a culpada pelo dia de merda que terei de enfrentar. São 4h50m da manhã.

06h25m

O relógio desperta. Acordo rindo da ironia do meu infortúnio. Meus pensamentos? Os mais negros e imbecis possíveis. Trabalho ao mesmo tempo pelo menos cinco desculpas pra não ir trabalhar. Não acho nenhuma delas convincente. Por incrível que pareça, não acho nenhuma delas justa com as pessoas que trabalho.

06h35m

- Bom, deixa eu levantar e ir tomar no cu de uma vez.

Alguém que começa o dia assim tem alguma chance de terminá-lo bem? Dormir apenas 1 hora e enfrentar um dia - que valerá por três - inteiro; "fo sho", como dizem os gringos.

07h20m

- Porra - falei pra ela enquanto calçava um tênis que esmaga meu pé direito - acredita que revirou o estômago agora?!

- Vai no banheiro.

- Seu pai acabou de entrar lá.

- Tsc.

- Diabo.

07h30m

A caminho da estação de trem. Ele demora 40 minutos pra chegar no Brás. Todo o meu desejo é de encontrar um lugar vago na ponta do vagão pra sentar e dormir. No chão, quero dizer.

07h34m

A plataforma está cheia. Ela nunca está cheia. E, mesmo não estando cheia, é difícil encontrar uma brechazinha pra sentar no chão.

07h50m

O trem está abarrotado e eu tirei a sorte grande de pegar um vagão que é uma igrejazinha barulhenta de merda de fundo de quintal - só que no trem - e o homem diz que "É Deus que faz isso por você. O homem não faz" enquanto tem três mulheres que ficam falando coisas aleatórias ao mesmo tempo e um outro homem diz "AMÉM AMÉM AMÉM AMÉM AMÉM" e tem essa mulher paranóica que está na minha frente achando que eu estou querendo encoxá-la e tem essa outra mulher atrás de mim enfiando as sacolas dela na minha costela e "Agora, Deus, Não! O interesse de Deus é salvar sua alma" e as janelas estão fechadas e está ficando cada vez mais devagar a troca de paisagem lá fora e eu me imagino fácil sacando uma .40 e acabando com toda essa porra chata e inconveniente e barulhenta logo cedo.

08h15m

Estouro meus tímpanos por causa da cristã impertinência alheia. Deus deveria ver isso aí direito. Agora quem tomou a frente na condução do culto, da oração, da palhaçada, enfim, é uma mulher com vozerio de cantora de MPB. Ela fala sobre o Dia dos Pais. Como é um assunto que sensibiliza/aflige/atinge, abaixo o volume do Comeback Kid e presto atenção no que ela diz. "A mulher que tá grávida... o homem fica com aquela desconfiança terrível de que o filho não é dele". Eu ouço: "Você que não quer ouvir, deixa quem quer ouvir". Eu ouço: "Porque essa palavra é para o pai; é para o FILHO e é para a MÃE que é PAI TAMBÉM". O trem freia. Os trilhos rangem. Ele inverte o percurso: anda pra trás. O ar está viciado. Não estamos nem na metade do caminho. Faz um calor dos infernos. Já supri minha cota semanal de blasfêmias.

*

17h25m

Vim entregar um documento aqui; corro os dedos por uma persiana e dezenove andares abaixo estão o Parque Trianon e o MASP. A recepcionista é bonita e simpática. O elevador é enorme e veloz - a velocidade terrível da queda em sua mais tenra concepção. O dinheiro parece ser tudo quando você mais precisa dele.

17h45m

- Did you speak english?

O cara me dirige a palavra. Falo english?

- More or less - arrisco, pra ver até onde as traduções de músicas e entrevistas de skatistas internacionais me levarão.

Ele ri. Cheira dinheiro. Tem queixo quadrado, olhos que parecem ser cinzas; olhos penetrantes que me deixam sem jeito. Também rio.

- Laguna - ele diz - Water - e faz círculos com as mãos, como quem desenha um lago. Compreendo o que ele quer dizer. Óbvio.

- River! - respondo.

- Yeah! Yeah! - E ri.

- No... - Balbucio reticente. O correto seria "lake".

Ele pergunta pausadamente, em inglês, se há algum parque na região onde ele possa ver um lago; ele diz que os adora.

18h00m

Estou no ônibus me sentindo um verdadeiro idiota. Um estrangeiro veio conversar comigo, me fez inúmeras perguntas num português quase tão bom quanto o meu - depois de vermos que meu inglês de varredor de calçada em subúrbios nova-iorquinos era ineficiente - e eu fui evasivo nas respostas, reticente, frio, ansioso. Que bela merda! Trocamos um aperto de mão de despedida enquanto ele se apresentava e eu "aham, sim, prazer, porra, tô indo, bom passeio, tchau". Com a cara colada no vidro do ônibus, suspiro. Faço um "X" no "suor" que embaça o vidro. It's bad when you annoy yourself.

18h30m

Sinto-me bem... Mesmo com meu entusiasmo não ultrapassando a marca de dois parágrafos.

08/08/2011

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 08/08/2011
Reeditado em 29/02/2012
Código do texto: T3147648
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