Fuga

Abri meus olhos. Não havia ninguém à frente. Sentia que minhas pernas não seriam capazes de correr, caso precisasse. Mas eu estava já segura. Havia me escondido muito bem: não enxergava qualquer coisa, as sombras ocultavam-me. Então, senti uma mão segurar meu ombro por trás: um arrepio gélido perpassou meu corpo. Estava perdida. Não havia modo de me salvar agora. Fora pega, de uma vez por todas, descobriram meu esconderijo.

Eu aprendera desde cedo a me esconder. Afinal, era perigoso ficar à vista. Comecei a observar as coisas ao meu redor e descobri que, estando atrás de determinados objetos, eu não via coisas maiores que se encontravam do outro lado. Logo, tudo me levou a crer que aquilo que não vejo não me pode ver. Assim eu segui, durante longo tempo, escondendo-me de quem estivesse me perseguindo.

Como havia dado certo, resolvi ir além: se eu fechasse os olhos, não veria ninguém. Se não visse ninguém, seguindo a lógica que estava funcionando, eu não seria vista. Funcionou, e segui fazendo isso, pois era mais fácil do que me preocupar com um lugar, por menor que fosse, para me esconder.

Até aquele dia. Naquele dia, eu sabia que estava fugindo de pessoas mais inteligentes: era preciso ter muito cuidado. Utilizei-me dos dois recursos: arranjei um esconderijo e fechei meus olhos. No entanto, me encontraram. E eu perdi.

Perdi o jogo. Porque se tratava de uma simples brincadeira infantil: esconde-esconde. Eu era bem pequena, e muito medrosa. A brincadeira causava apreensão, medo, como numa real perseguição. Acontece que, crescida, ainda sou medrosa. Mas já não tenho medo de brincadeiras ou fantasias: eu temo a realidade. Tenho medo dos problemas sociais e do perigo latente do mundo que me cerca. Temo a violência e suas causas. Temo as catástrofes ambientais que estão aparecendo e que ainda virão. Eu temo esse cenário político e econômico e social que parece imutável.

Enfim, tenho medo. Porém, descobri não ser a única: as pessoas, em geral, têm medo. Não exatamente das mesmas coisas, mas têm medo. Quando descobri isso, comecei a observar por que o medo não pode contribuir para mudar aquilo que é objeto de nosso temor. Observei como as pessoas agiam. E então, descobri algo interessante: elas agiam como eu, quando criança. Escondiam-se atrás de coisas que pensavam ser capazes de protegê-las: como grades, por exemplo. Funcionava, como por tanto tempo funcionou para mim. A questão é que era pura sorte: apenas eu tinha a ilusão de que jamais seria pega; a probabilidade disso acontecer de fato, entretanto, era grande.

As pessoas começaram a perceber que não bastava esconderem-se: era preciso mais. E elas foram além: começaram a fechar os olhos. Não literalmente, como eu. Mas fechavam os olhos quando se viam diante de uma realidade ameaçadora. Fingiam que não a viam. Algum vizinho fora assaltado ao ir para o trabalho: finge-se que isso não ocorreu. Uma criança de rua foi morta, ou um advogado, ou um traficante: naturalizam-se essas atitudes como inerentes à sociedade e esquece-se disso tudo. Porém, vi que as pessoas em geral eram mais espertas do que eu fui: elas aprenderam a aprimorar a forma de se esconderem. Desenvolveram mecanismos auxiliares: as estatísticas, por exemplo. Tudo vira dado estatístico: doenças, assassinatos, mortes, miséria, fome, analfabetismo, tudo, enfim, vira algum número qualquer. Números não têm vida, não falam, são apenas símbolos que nós, humanos, é que criamos: é fácil esquecê-los.

Percebi que essa foi a forma que as pessoas encontraram para seguir vivendo. Caso contrário, elas estacariam de medo. Não colocariam o pé para fora de suas casas. Não posso afirmar que isso seja de todo ruim; a questão está em saber em que nível o esquecimento é necessário e auxiliar, ou prejudicial. Porque fechar os olhos para o problema é colocar barreiras à sua resolução. É eximir-se do compromisso com a realidade circundante e viver num estilo que simplesmente ignora o ser humano enquanto coletivo, dando valor ao individualismo extremo. Talvez seja esse um dos principais motivos pelos quais nossa sociedade enfrenta problemas que não consegue resolver. Vivemos de esquecimento ao invés de enxergar como as coisas são e o que e como é possível fazer para que elas sejam melhores. Porque a fuga não é sinônimo de extinção dos problemas ou perigos: eles permanecem latentes.

Naquele dia eu já intuía que não estava completamente segura. Tinha uma vaga noção de minha fragilidade. Eu sabia, sim, que até então meu método havia funcionado perfeitamente. O medo exagerado estava me confundindo, nunca havia acontecido nada, não seria hoje que me pegariam. Corri em busca de um esconderijo. Tive vontade de sair junto com outra criança, talvez fosse melhor. Isso, entretanto, não era costumeiro, estranhariam minha atitude, iriam rir de mim. Fui sozinha. Trêmula, ofegando, entrei num beco. Estava bem escuro. Fechei meus olhos. Podia sentir meu fim próximo. Apertei mais os olhos: comecei a ouvir passos. O barulho se aproximava. Foi quando resolvi abri-los: eu já percebera que não adiantava não os ver para que não me pegassem. Ainda estava escondida, o que era uma esperança. Mas não acreditava mais que isso me protegeria: entretanto, era tarde. Enfrentei o medo, porém, de olhos abertos.

Clarissa de Baumont
Enviado por Clarissa de Baumont em 10/12/2006
Código do texto: T314652
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