Trem noturno para Lisboa

Em um texto muito interessante, publicado na revista “Vida Simples” em junho de 2009 (Edição 80), a autora Liane Alves afirma que uma forma muito comum de auto-sabotagem é quando “aceitamos fazer um trabalho por dinheiro sem questionarmos se é exatamente isso que queremos fazer na vida”. Segundo ela, o conflito que pode surgir a partir dessa opção “é particularmente agudo no campo da criatividade”. Ela dá o exemplo de uma redatora de publicidade, que embora ganhasse uma fortuna numa agência de São Paulo, estava infeliz: “Sofria a cada manhã que tinha de trabalhar, a cada texto que tinha de escrever”, e com o tempo a sua produtividade caiu, seu cérebro travou, e ela acabou sendo demitida. “Hoje, feliz e solta na vida”, continua a autora da matéria, “ela ensaia os rumos de seu primeiro livro”; e o cérebro dela, refeito da crise, “colabora intensamente para isso”.

Não é linda essa história? Resumindo: Você ganha uma fortuna fazendo o que não gosta e, de repente, por falta de criatividade e produtividade, é demitido. Problema? Não! Você vai escrever um livro e ser feliz.

Mas e o resto? Como era a vida dessa redatora de publicidade? Ela era casada? Tinha filhos? A família dependia dela para viver? A casa onde ela morava era própria? Ela tinha algum financiamento para pagar? Se ela tinha filhos, onde eles estudavam? Ela tinha uma ajudante do lar, uma babá, uma faxineira, uma lavadeira? Tinha TV a cabo e internet banda larga?... E assim poderíamos prolongar os questionamentos até terminar o nosso espaço nesta coluna, sem conseguirmos produzir uma imagem que se aproximasse da realidade vivida por essa mulher.

E a revista “Vida Simples” não dá nenhuma resposta a estas perguntas. Por quê?

Eu tenho uma teoria, que começou a se esboçar quando eu vi o preço da revista: R$12,00. Pode parecer pouco para você, mas não é para a maioria dos brasileiros. Isso porque a revista “Vida Simples” foi feita para pessoas bem situadas no mundo capitalista, que podem se dar ao luxo de uma vida mais simples sem perder o conforto e a segurança que o sistema lhes proporciona (ou, pelo menos, sem comprometer muito o seu padrão de vida anterior). Ela não foi feita para pobres, que já têm uma vida simples (por necessidade, às vezes sem terem acesso ao básico, ao mínimo conforto). Eu, por exemplo, que não me considero pobre, se eu “chutasse o pau da barraca” e fosse fazer o que eu realmente quero (que é ler, escrever e dar, no máximo, quatro ou cinco aulas por semana), minha família passaria necessidades. É claro que eu e minha esposa poderíamos nos adaptar: tiraríamos nossos filhos da escola particular, controlaríamos nossos gastos com comida e roupas, reduziríamos o nosso lazer capitalista (restaurantes, viagens, etc.) ao mínimo (ou a zero) e viveríamos uma vida simples (bem simples). Mas para a sociedade eu seria um monstro: “Olha só aquele vagabundo... A família passa por necessidades e ele dentro de casa, de bermuda e chinelos, lendo e escrevendo um livro que ninguém vai ler! Que absurdo!”.

E o pobre, então? Como faria? Como viveria a família de um operário que ganha um salário mínimo por mês (que corresponde a 60% da renda familiar) se ele resolvesse largar o emprego e se dedicar a escrever poemas de amor? E a família de um professor de escola pública, que sustenta a esposa e os filhos com o seu novo piso salarial de R$1.300,00, se ele resolvesse abandonar a sala de aula para pintar quadros surrealistas?

E tem mais: Será que o leitor da revista “Vida Simples” está interessado em saber o que os pobres realmente gostariam de fazer na vida? Será que ele se perguntou alguma vez se aquele homem de trinta e poucos anos, que trabalha na coleta de lixo, realmente gosta do que faz? Será que ele não tem curiosidade em saber se esse homem, que dedica a maior parte do seu tempo em deixar a cidade mais limpa, gostaria de fazer outra coisa na vida? E aquela mulher de quarenta anos que passa o dia inteiro retirando vísceras de centenas de frangos, que correm a uma velocidade constante na esteira de um abatedouro industrial? Será que ela não gostaria de estar em casa cuidando dos filhos ou trabalhando em outra coisa? Será que ela não gostaria de poder dançar mais, divertir-se mais ou estudar mais? Talvez sim, talvez não. Mas quem se importa?

O fato é que, a maioria dessas pessoas está tão absorvida pelo furacão do desenvolvimento capitalista que poucas realmente questionam se o trabalho que realizam é o melhor para a sua vida. Elas estão anestesiadas por uma lógica que parece inquestionável: “Para o mundo se desenvolver e prosperar, alguns poucos têm que pensar e refletir, organizar, decidir e gerenciar tudo, enquanto a maioria tem que 'colocar a mão na massa', 'dar duro', cumprindo sua jornada rigorosamente, ganhando pouco, para dar de comida aos filhos e, quem sabe, ‘melhorar de vida’ no futuro”. Essa é a lógica. E hoje ela se reproduz quase naturalmente, como se tudo isso fosse natural e sempre tivesse existido, sem a mínima chance de ser diferente.

No início do mês eu comprei um romance em Belo Horizonte que, de cara, me chamou a atenção pelo título: “Trem noturno para Lisboa”, de um escritor suíço chamado Pascal Mercier. Ao folhear o livro, fui transportado novamente para Lisboa, cidade onde pude morar por um tempo, graças a uma bolsa de estudos paga pelo governo brasileiro, enquanto me dedicava a um doutorado em História (sustentado pelos impostos pagos por você, leitor, e por todos os outros brasileiros pobres ou ricos que pagam impostos). E não digo isso por puro exibicionismo, pois sofri muito em Lisboa [Chorei muito pelas colinas medievais da Alfama, ou no meu quartinho de pensão, com a cara enfiada no travesseiro ou na toalha molhada do banho, aos gritos, de saudade e desespero].

Hoje, enquanto devoro vorazmente (com um prazer indescritível) esse livro excepcional, a sensação que eu tenho de estar de novo naquela cidade, junto com o personagem principal, é ainda maior, pois sinto também muito do que ele estava sentindo, caminhando, solitário, pelas ruas da Baixa Pombalina ou do Bairro Alto, ou visitando as inúmeras livrarias e sebos da parte velha da cidade.

Mas o que isso tem a ver com a nossa história? Eu explico: O personagem principal do livro é um professor de línguas clássicas de um colégio de Berna (Suíça), que um dia se levanta durante uma aula, abandona a sala e toma um trem para Lisboa. Ele queria, aos 57 anos, mudar de vida, fazer outras coisas, conhecer outras pessoas, sobretudo um escritor português chamado Amadeu de Prado, que tinha uma visão peculiar e fascinante sobre a vida e a morte, a solidão e o amor.

Mas esse professor, que deixou para trás sua rotina bem organizada, seu mundo fechado em Berna, não era casado, não tinha filhos, e tinha muito dinheiro guardado, fruto de trinta anos de austera poupança (sua vida era só ir de casa para o colégio e do colégio para casa).

A história desse professor (e do misterioso Amadeu de Prado) é tão interessante, e o livro fez tanto sucesso na Europa e no resto do mundo, que “Tomar o trem noturno para Lisboa” virou uma expressão idiomática, usada para se referir a alguém que pretende mudar de vida, seguindo a voz do seu coração.

E você, leitor? Você pode se dar ao luxo de “tomar o trem noturno para Lisboa”?

Eu não. Pelo menos por enquanto...