Traduções tardias
Quando me formei no colégio, e lá se vão saudosos nove anos (até parece ontem), tive que escolher a música que usaria na minha formatura, no momento que recebesse o certificado de conclusão do Ensino Médio. Que música escolher, qual melodia representaria melhor a minha personalidade, seria o espelho da minha alma? Ó dúvida cruel, o mundo vai acabar se não encontrar uma resposta satisfatória, as nações entrarão em guerra e eu serei o responsável.
Alguns colegas sei que já tinham a escolhido ainda na primeira série do Ensino Médio, outros diziam desde o início do ano qual seria. Faltavam dois dias para a formatura e eu, nada. Assim, parei em frente ao som e catei todos os CD que tinha à mão. Ouvi tanta música que não sabia mais quais eram as que tinha gostado e as que detestara. E eis que escuto I used to love her, do Guns N’Roses e agradei-me. Gosto de rock e procurava algo alegre, nada de músicas nostálgicas ou românticas. O momento de festividade pedia melodias alegres, assim como a do Guns.
Ocorreu, enfim, a formatura, a música tocou, fiquei feliz e os anos passaram. Pois sete invernos decorreram e numa busca pela letra da música encontrei algumas palavras que chamaram a minha atenção. Sou um tanto fraco no inglês, mas sabia que “I had to kill her” não significava coisa boa, assim como “I had to put her, six feet under” também não era elogio a ninguém. Busquei rapidamente a tradução e encontrei o seguinte para os termos que me instigaram “eu tive que matá-la” e “eu tive que a pôr seis pés abaixo”. Minhas suspeitas foram confirmadas. Uma declaração agressiva a uma finada que só foi desenterrada da minha ignorância muito tempo depois.
Passei, então, a questionar-me: e se tivesse alguém naquele dia da formatura que soubesse o que Alx Rose cantava realmente, certamente deve ter rido da minha cara “aquele idiota acha que é uma música legal e não deve ter nem noção do que estão cantando”. E realmente não tinha.
Não é por esse motivo que não irei ouvir mais essa música nem outras com conteúdo semelhante. Continuo ouvindo e assim permanecerei, mas é muito melhor saber o que se canta. Não preciso concordar com a letra. A melodia gostosa já me basta. Não é porque canto que estou concordando. No entanto, sei o que ouço e isso é muito melhor.
Assim que realizei a descoberta do século, recordei-me de outros fatos semelhantes já haverem ocorrido. Comigo e com outras pessoas. Outra feita, estava trabalhando na organização de uma competição de atletismo e fiquei responsável por escolher as músicas que animariam a torcida entre uma prova e outra. Tive que trocar a faixa uma vez porque me disseram que a letra não era adequada para o momento. Não lembro que música era, mas vejo que a história se repetiu. E não só comigo. Sei que não sou exceção. Há muitos outros sem noção iguais a mim que ouvem um som legal e nem se preocupam com a letra. Um amigo meu adorava ouvir Piece of me, da Britney Spears. Ouvia-a indiscriminadamente. E era feliz com isso. Até descobrir o que era cantado:
“A cada dia um novo drama
Não vejo problema algum em trabalhar e ser mãe
e com uma criança nos braços...”
Nunca mais ouviu! E eu ria dele...
Vemos que a preocupação com a letra é insignificante se gostamos da melodia. Somos muito mais atentos ao que ouvimos ser agradável sonoramente do que se o artista está se declarando, xingando, clamando “salvem as baleias!” ou simplesmente filosofando sobre a vida. O desconhecimento da letra não impede que a ouçamos, nem que gostemos. Mas é necessária certa cautela quando ouvimos em situações onde outras pessoas possam sentir-se ofendidas, onde o áudio possa não ser compatível com o evento.
O valor relaxante, estimulante e nostálgico que uma melodia com arranjos bem produzidos pode proporcionar não deve rebaixar-se à letra depreciativa que se distancia da sonoridade suave. O significado das palavras é muito importante, mas em certos casos merece permanecer no mundo do desconhecido, longe da nossa sapiência em prol da nossa simpatia pela música.