A  platina que ainda nos falta
 
                               Li crônica recente do grande Veríssimo e logo me lembrei do meu carro DKV, 1960.  Igual ao escritor, também não conheço patavina de motor de carro, e dirijo automóveis desde a tenra idade de 18 anos.
                               Em razão da minha ignorância, apego-me ao santo ligado aos motoristas, o velho e bom amigo São Cristóvão, suplicando que o carro não enguice em lugar errado.
                               Mas por quê estou estranhamente aborrecendo meus amigos leitores com esse papo monótono de motor de carro?  Explico logo: sabe como é, o cronista acha qualquer motivo para escrever sua crônica, vale até perder tempo e explicar como se faz um bolo mármore...
                               É que acabo de ler o Veríssimo, com aquele seu refinado humor. Nos relata que jamais viu um platinado de carro na vida. E fica abismado como os mecânicos botam a culpa sempre neste pequena peça, quando não encontram o defeito do carro. E acabam aconselhando: “troque o platinado”.
                               Se não me engano, com a ignição eletrônica, o platinado deixou de existir, pelo menos do jeito que era antigamente. Quero dizer que tive a ventura de conhecer pessoalmente, bem de perto o  ora tão falado platinado. Foi lá naquela idade dos 18 anos. Dirigia um DKV, caminhonete,  para o meu pai. O carro tinha motor de dois tempos e era necessário usar gasolina misturada com o óleo, mas a regulagem do motor um sofrimento. E a culpa era justamente do platinado. E não era enganação, não. Era verdade!
                               Graças a minha amizade com um mecânico da Volkswagen da rua São Clemente, que fazia uns biscates nas horas de folga, pude conhecer e saber que o platinado desregula facilmente. O mecânico Souza aparecia na minha casa todo sábado para a regulagem. Até que um dia perguntei:  -  Ô, Souza, não tem um jeito dessa  porcaria parar de desregular?   -  Tem, sim, mas você terá que arranjar um pouco de platina para eu colocar  no platinado do  seu carro.  -  Mas onde vou arranjar a platina?  -  Bem, eu conheço um dentista que nos trabalhos dentários usa platina de verdade. O cara colocou platina no carro dele e aí o platinado ficou firme, no ponto exato, e não desregulou mais.
                               Só tive dentistas amigos, porém me faltou coragem para pedir um pouquinho da platina para incrementar o meu DKV.   O Souza continuou aparecendo lá em casa, em Botafogo, para regular o carrinho e embolsar uma boa gratificação pelo serviço. Vivia apavorado com o platinado fora do ponto. E por falta de sorte, meus destinos sempre incluíam ruas de íngremes ladeiras. E o leitor já pode imaginar. No meio da ladeira, o raio do platinado desregulava...  O nosso Veríssimo fez uma ligação do platinado com o técnico de futebol. O técnico não está dando certo, troca-se  o platinado, quer dizer, troca-se   o  técnico.
                               Nestes tempos estranhos, faço uma conexão diferente. Os amigos devem estar lembrados da metáfora do telhado com goteiras, telhas quebradas, para explicar a maluquice de muita gente que anda por aí no mundo. Em outra crônica falei do velho psiquiatra que explicava de modo simples essas  loucuras todas, comparando com o telhado. Dizia ele, com muita graça, que todos temos nossas telhas quebradas, ou pelo menos rachadas, ou, no mínimo, algumas goteiras. A consequência fatal era o comportamento inadequado.
                               Assim  como a ciência evolui, mudando os conceitos e terminologias, faço agora, para terminar, a minha ilação, na verdade, uma explicação mais refinada, em razão do mau funcionamento do cérebro, hoje bastante    estudado.
                               Muitas vezes, nascemos com conexões mal feitas no cérebro. E, para nossos sustos, assistimos muitos comportamentos pelo menos erráticos. É aí que entraria um esclarecimento para o povo entender, vamos dizer assim, uma metáfora mais moderna. O defeito não estaria no “platinado” do sujeito?
                               O escritor gaúcho, brincando, nos disse que simpatiza muito com o virabrequim, mesmo sem saber pra que serve. Claro,   há outras peças que precisam trabalhar bem.  Quem deixaria de lado a peça da minha antipatia?  A ventoinha!  Vários radiadores meus ferveram e me deixaram a pé na estrada porque faltou o ventinho da ventoinha. Felizmente, são peças fáceis de consertar, não exigem a extrema perícia de uma regulagem do platinado.
                               Desta conversa toda com os amigos, se tudo evolui, me acode uma  reflexão.
                               O cérebro, este espetacular “motor” humano, responsável pelo comportamento e pelas emoções, desde as mais grosseiras até às mais sublimes, quem sabe,  aguarda uma mutação milagrosa, que incustre, de vez, a platina preciosa que nos falta nesta nossa dificultosa caminhada terrena, deixando, enfim, a humanidade no “ponto”, rumo à redenção tão ansiosamente esperada e jamais alcançada.
            

Observação:  Depois de feita a crônica, recebi gentil comentário do recantista Carlos Marques, que me esclareceu a existência não só de um platinado, mas de três( um total de seis platinas, duas em cada platinado), conforme a fotografia por ele enviada).