Texto à procura de seu dono.

Dizem que escrevemos para aplacar a solidão. Escrever seria trazer ao incômodo uma cadeira, um copo de café e um pedaço de broa. O meu compadre não recusa a broa, mas pede com os olhos um bom pedaço de queijo do serro.

Hoje esses pormenores não vêm ao caso, já que escrevo em prosa e não em verso. O caso é outro. Vejo-me ao final do dia, com tanto o que falar e ninguém para ouvir. Dessa vez me atrevo a partilhar. Apesar de escrever a todos, sussurro todas as palavras nos ouvidos de quem agora não pode me ouvir, pois algumas cêras não se vão com cotonete, nem dissolvem com água quente de chuveiro.

Estou em uma viagem. Volto a Maceió, minha nem tão nova moradia, junto a meu pai, meu novo companheiro de casa. Saí de Belo Horizonte a Governador Valadares e de Valadares a Teófilo Otoni. Agora estou em um hotel de estrada em Feira de Santana, o meio do caminho. Não seria uma viagem interessante, muito mais teria a contar da minha viagem de moto de Belo Horizonte a Maceió, nela eu estava sozinho e conversava com os ventos, com a chuva e comigo mesmo. Essa história, contudo, encontrou seu destino. Agora minhas histórias são como formigas na chuva e, apesar de saberem exatamente o seu destino, perdem-se nas atribulações do ambiente.

Acordei às 4 e 30 da manhã. Uma fria brisa da madrugada invadiu o meu cobertor, mas o que realmente me acordou foi o movimento constante dos chutes que meu pai distribuia em meus pés. Não sei se foram toques carinhosos para me despertar sem grande susto, ou se ele simplesmente exteriorizava o desagrado na minha quebra de horário: em pé às 4:20 hs. O carro, popular, mais parecia uma charrete de mudanças. Cada mala, cada sacola, cuidadosamente distrubuídos em um espaço mínimo e desajeitado. Os condutores espremidos em um pequeno espaço entre as rédeas, de tempos em tempos revezadas, e o cavalo. A viagem parecia bastante forçada, os viajantes são estranhos familiares, a bagagem desproporcionalmente maior que o espaço e a chuva pouco convidativa para os intimidadores 1000 quilômetros de estradas desconhecidas. Tínhamos a nosso favor os meus pães de cebola, meus porque fi-los com mãe, e alguns biscoitos de massa de abóbora com gotas chocolate.

Saímos ainda na noite escura, como diriam os mais velhos lá da minha roça. Meu pai assumiu o primeiro turno da direção e eu me apertei entre a carne de sol e a barra de queijo mussarela, embaixo o notebook e sobre minha cabeça, a tampa do porta-malas. O céu parecia um tapete estrelado e eu, preso como uma marionete, senti que se puxassem a corda certa, alcançaria ao menos uma delas. Não sei o que eu faria com uma estrela, mas sei que seria impossível escondê-la, independente de quão escuro fosse o pote (não faço ainda a menor ideia do porque esconder a pobre e inocente estrela). Um pouco abaixo, o lago interrompeu meus planos. Vários vaga-lumes dançando sobre o reflexo do lago. Nada me tira a ideia de que encostavam, uns nas lâmpadas dos outros, a procura não só do calor, mas do afeto que esquenta por completo. Se dá certo, não sei. A velocidade que propõe Ford é cruel demais com a “vagareza” da natureza.

O dia já havia raiado e a viagem estava bem encaminhada. A estrada estava cheia e ler as mais diversas placas dos caminhões, tentando visualizar os lugares dos quais vieram adianta bastante a viagem. Uma carreta de placa ilegível vinha descendo vigorosamente e, quando passava ao nosso lado, interrompeu a lógica do tempo. Os segundos se arrastaram e um dos pneus lentamente se comprimiu e logo após expandiu, liberando uma densa e esguia fumaça preta, acompanhada de um forte estrondo e multicoloridas faíscas provocadas pela nudez da roda. O pneu explodiu e um pedaço preto de qualquer coisa parecida com peça (depois descobri que era pneu mesmo) que veio em direção ao nosso carro, ao nosso vidro. Tão lenta quanto a aproximação do objeto foi nossa reação de tampar o rosto (super efetiva proteção, certamente...) e, depois do susto passado, soltei uma gargalhada tão sincera que incomodou ao meu pai. Foi muito bom sentir que estou vivo ao perceber que eu poderia estar morto, pena isso parecer tão clichê. Quis fazer duas ligações, mas a TIM não cobre minhas necessidades mais existenciais.

A primeira parada do dia foi para o almoço. Não poderíamos almoçar de verdade, já que o objetivo primeiro era o de percorrer os mil quilômetros pelo dia e descansarmos em algum hotel de estrada pela noite, completando o trajeto no próximo dia. A solução seria saciar a fome com os deliciosos pães de cebola; alimento completo, contido de todas as vitaminas e substâncias necessárias para um desenvolvimento saudável, fonte de energia e nutrientes para toda a família (já a venda na casa do Lucas mais próxima de você).

Pouco tempo após o almoço, meu pai resolveu trocar o posto de motorista. Não por cansaço, claro, e sim por alguma coisa relacionada a pressão no rim e excesso de utilização da coluna. Já tinha dirigido de Valadares a Teófilo Otoni, mas a sensação de estar sendo observado, e julgado, pelo meu pai é bem vívida, independente do número de vezes que fazemos isso (eu dirigindo e ele de passageiro). Pensei num exame de avaliação de condutores misturado com um reality show, salpicado com toques do filme “jogos mortais”. Juro que ele tava imaginando que se pisasse fundo no assoalho do passageiro, o meu pé responderia magicamente, executando a operação desejada (sempre a de frear e manter uma velocidade impraticável). Eu mesmo, ao jogar um videogame de corrida, inclino o joystick, a cabeça e o tronco pro lado da curva, já tentei tal tipo de mágica e sei que não ajuda muito, mas ajuda com os nervos.

Nunca tive medo de me perder na estrada, sempre existe um retorno ou uma conversão ilegal para corrigir (sei que não é o ideal, mas é possível). Tenho medo é da estrada figurada, da estrada da vida. Cresci ouvindo que a vida é uma linha contínua, sem direito a retornos e marchas-a-ré. Não sei se acredito, mas é tão imperativo que me assusta.

Finalmente Feira de Santana. Dia ao final, mas ainda ensolarado. Não sei quando foi, não percebi e ninguém me avisou, mas, assim como quando estava de moto, éramos, de novo, eu, a máquina e o por-vir, o mundo a conhecer. Meu pai, que não tinha nada a ver com minha vivência de estradas, me acordou para um problema. Ele não queria viajar a noite. Eu não queria parar. Parar não significava apenas deixar as carretas e caminhões de lado, seria permitir que o veloz monstro do medo me encontrasse aonde quer que eu estivesse. Maior que o medo de ser engolido é o medo da hierarquia. Tentei argumentar, mas ordem de cima existe pra ser cumprida, me disseram. Aqui estou eu, portanto. Escrevo para que a velocidade dos meus pensamentos me distancie daqui, mas alcance você aí, tão longe de mim. Escrevo agora para que amanhã tenha motivo para ainda escrever.