Sobre o primeiro beijo
Sobre beijo não falo. Sobre beijo não se fala. Beijo não é para ser falado, só beijado. Falo sobre o que então? Falo sobre os lábios, aqueles que me deram o beijo. Depois daqueles lábios, compreendi o beijo. Não. Depois daqueles lábios descompreendi, desaprendi, ensandeci, enlouqueci. Ah! Depois daqueles lábios, nada mais vi. Virei menina travessa, pulando, cantando, dando risada da vida. Ah! Que poder tinham aqueles lábios! Lábios alquimista. Poeira depois deles, reluzia. Não conhecia estado de graça, não conhecia as cores que iam e vinham no teto do meu quarto, não conhecia os compartimentos secretos de minha memória, nem os corredores de mim mesma. Todos lentamente percorridos centenas de vezes naquela noite. Idas e vindas gozadas vigorosamente, idas sem desejos de vindas. Os olhos não queriam fechar e as mãos não acreditando, tocavam os lábios bem de mansinho, para não roubar a suavidade que os lábios dele haviam deixado. Noite que não acabava nunca mais. Estrelinhas no quarto, apertões no travesseiro, levanta e deita, deita e levanta muitas vezes. Que agonia! Risos solitários, viagens acompanhada, olhos inquietos querendo ultrapassar o concreto e ganhar rua, rumo...não sei bem. Não sei bem descrever o que senti quando senti pela primeira vez outros lábios nos meus.
Foi essa a resposta que dei para minha sobrinha quando ela me perguntou como havia sido meu primeiro beijo, o que eu havia sentido. Fui sincera, era exatamente essa a sensação, um misto de entusiasmo com alucinação e inúmeras tentativas de reviver aquele friozinho que começava na barriga e tomava conta do corpo inteiro, principalmente das mãos, trêmulas e geladas. Ela me olhou com cara de quem não estava entendendo nada. Fez um sinal com a cabeça e as mãos dando a entender que eu era maluca e balbuciou alguma coisa sobre exagero. Sem dizer mais nada, virou para o computador e continuou a conversa com seu amigo virtual. Pensei em argumentar e fazê-la entender o que era o primeiro beijo para alguém da minha geração, mas logo desisti, uma menina de 15 anos hoje não entenderia os quinze anos das meninas de algumas décadas atrás, então, suspirei e lamentei, crendo ser o único sentimento que me restava.
Mas os lamentos de uma escritora, mesmo amadora como eu, sempre rendem boas conversas e cá estou eu contando o ocorrido. Aproveitando o ensejo, como boa prosista que sou quero fazer uma pergunta. Será que o primeiro beijo não causa mais confusão nas meninas de hoje? Considerando minha experiência com elas, já que além de tia, sou professora, eu responderia que o primeiro beijo perdeu um pouco do seu encanto, ou melhor, eu diria que o primeiro beijo não vem mais acompanhado de sonhos, de medos, de vergonhas. Não estou falando do famoso “selinho” porque esse já faz parte da infância delas, mas do primeiro beijo de verdade, aquele que espera o primeiro amor, que vem carregado de fantasias, que foi sonhado por dias e noites insistentemente. Ah! Queridos amigos, hoje se beija e pronto. Sem suspiros, sem congelamentos, pelo contrário, hoje é tudo muito quente desde o início. Não há esperas, suspenses, conquistas, olhares. Hoje beijar é como cumprimentar, se cumprimenta todos, se beija todos. Se o beijo fosse um texto, eu diria que ele deixou de expressar a função emotiva para expressar a fática. Eu, que fui bela adormecida um dia, despertada pelo beijo do meu príncipe cheio de encantos, pelo menos na época , lamento que minha sobrinha e as outras meninas dessa geração e das próximas que ainda virão nunca terão em seus baús de memórias a embriaguez de uma noite inteira rondada pelas alucinações do primeiro beijo.