Ato falho III – Aclimatação
Não vejo nada, não sinto nada. O inverno extasia e anestesia. Os ricos pobres turistas recém chegaram para ver a neve, animados com o vento cortante, rindo à toa, mas o vento está seco – Não vai nevar. A grã-finagem adentra o hotel e eu sigo meu passo nervoso e dolente rua acima, acompanhada do vento escabroso cortando tudo com seu gelo seco, cruel, rápido e impaciente.
Em meio a essa marcha infame e saturada, me vem um pensamento tolo e ridiculamente reconfortante sobre esse vento animalesco. O sopro noroeste que vem dos Andes é imortal, foi o mesmo emaranhou as crinas de Sepé Tiarayu, do general Bento e do capitão Gumercindo. Foi o mesmo vento soprado no feitiço do Yarau, nascido das tolderias mais ocidentais do continente que hermanou o fatum doce do sangue podre de índios, maragatos, farrapos e caboclos, que morreram devolvendo à terra a seiva que foi emprestada as suas veias.
E dentre meus devaneios pátrios, com a minha maravilhosa mania de ver a poética beleza de evocação ancestral em qualquer coisa vulgar e nociva, me esqueço da calçada quebrada e tropeço em uma rugosidade que as raízes de uma árvore velha fizeram no cimento. Eu nem sinto vergonha, penso em maldizer a sorte, mas antes disso tudo peço desculpas ao espírito ancião da grande mãe árvore em Guarany, sentando-me em sua raiz extremamente enfadonha, interrompendo a passagem dos transeuntes pela calçada.
Fico ali o resto da tarde, pensando no vento, no frio, na guerra guaranítica, no nosso PIB defasado, no dólar em baixa, no meu 4,5 em matemática; de vez em quando grunhindo alguma peste em voz alta.
E todos foram felizes para sempre, até os turistas que não viram a neve, mas viram uma guria alta de olhos miúdos, nariz grande e cabelos claros, resmungando em uma língua indígena desconhecida, escorada em uma árvore centenária - bem no centro da cidade – um verdadeiro espetáculo.