Não me julgues como os julgam
Sábado, 20 de novembro de 2010: “Juíza aposentada ignora blitz e provoca acidente com sete veículos em Porto Alegre” (Folha de São Paulo). A representação máxima da lei descumprindo a própria lei. A infratora: Rosmari Girardi, de 53 anos, ex-juíza em Uruguaiana-RS.
Contrapõe-se a este lamentável episódio urbano, a perda da carteira de habilitação de um garoto de seis anos. Ele comportou-se mal durante a aula e teve a carteirinha recolhida pela professora, que a fizera durante um projeto sobre trânsito na sua turma.
Comentei com essa professora, minha amiga, que leciona em uma escola de Educação Infantil de Uruguaiana, sobre o episódio da juíza-transgressora. Na mesma hora, ela contou-me sobre o projeto que realizou com seus alunos e citou-me este fato que veio na contramão do ocorrido em Porto Alegre. O projeto sobre trânsito foi desenvolvido com seus alunos de seis anos da pré-escola. Com o nome de “As rodinhas que fazem girar o mundo”, ela trabalhou a educação para o trânsito e valores que as crianças necessitam desenvolver nessa idade. Cada pequeno recebeu uma Carteira Nacional de Habilitação personalizada com o seu nome e desenhou nela seu rosto e assinou. Desde então, cada aluno poderia conduzir a bicicleta que estava pintada na carteirinha. A cada má atitude em sala de aula, os novos condutores perdiam um ponto na carteira. Somando-se cinco pontos, ela seria recolhida, ficando impossibilitados de andar de bicicleta. Um dos garotos acabou perdendo essa carteira, chorou e contou à mãe. Esta, felizmente entendeu a proposta da atividade e disse ao filho que ele não poderia mais pedalar porque não se agira bem em aula. Ele chorou novamente. Mais tarde, acabou recebendo de volta a sua CNH sob a condição de comportar-se a partir de então.
Essa valorização do direito de dirigir faltou à juíza aposentada, que possuía sinais de embriaguez. Tinha aspecto sonolento, falta de equilíbrio e fala arrastada. Depois de duas horas após o início do inconveniente acidente, pôde dormir sossegada em casa. Mas quem não deve, não teme: negou-se a fazer o teste do bafômetro e as coletas de urina e de sangue. É difícil acreditar que não estava alcoolizada. De acordo com a delegada Clarissa Rodrigues, delegada responsável pelo caso, a magistrada mal conseguia ficar em pé, articulava mal as palavras e apresentava hálito de quem havia consumido bebida alcoólica.
O Código de Trânsito Brasileiro fala com clareza quanto a dirigir sob influência de álcool em dois artigos. O artigo nº 165, que define como infração gravíssima dirigir sob influência de álcool em nível superior a seis decigramas por litro de sangue, penalizando com multa, suspensão do direito de dirigir, retenção do veículo e recolhimento da habilitação. E o artigo nº 277, que diz que todo condutor envolvido em acidente de trânsito, sob suspeita de haver excedido aquele mesmo limite de seis decigramas, deverá ser submetido a testes de alcoolemia, exames clínicos, perícia ou outro exame que permita certificar o seu estado.
Ainda assim, o laudo da perícia conseguiu ser INCONCLUSIVO. É, em letras garrafais. Será que o mesmo ocorreria com um pedreiro, professor, arquiteto ou jornalista?
A fé na isonomia das instituições toma mais uma chibatada e enfraquece a credibilidade já debilitada. De acordo com a mesma delegada que confirmou os indícios de alcoolismo da juíza aposentada, não houve materialidade, ou seja, prova de que dirigia embriagada. Portanto, a transgressora não responderá por embriaguez no trânsito. As responsabilidades penais dizem respeito, somente, aos danos materiais causados aos proprietários dos veículos acidentados.
Menos de uma semana antes, no dia 14 de novembro, a Zero Hora havia publicado uma reportagem de capa mostrando o trauma de famílias que tiveram um dos familiares mortos em acidentes de trânsito. Algumas pessoas mantêm-se insensíveis a essa realidade. O desenho da Disney com o Pateta representado pelo pacato pedestre senhor Walker e pelo transtornado motorista senhor Willer, figura-se como um retrato semelhante à autoridade justa dos tribunais e à motorista destrambelhada da madrugada porto-alegrense.
Nunca é tarde para que aprendamos. Se essa cidadã, que deveria ser um exemplo de motorista ao guiar o seu veículo, frequentasse as aulas de reciclagem dos Centros de Formação de Condutores, quem sabe aprendesse que beber e dirigir não combina. Ou se ainda morasse em Uruguaiana e participasse das aulas daquela turma da pré-escola, talvez valorizasse mais o direito de dirigir, assim como o aluno-transgressor. Ela tem idade para ser avó do menino, mas é ele quem poderia ensiná-la, pelo exemplo, como valorizar a sua CNH.