APLAUSOS - CRÔNICAS HISTÓRICAS
Sou contra. Não aceito o que estão fazendo. Estão jogando meu trabalho no lixo. Consegui deixar o país em ordem, tudo foi colocado no seu devido lugar e agora me perguntam ainda o que acho dessa tal de anistia. É cedo, o país não esta completamente pronto para libertar tantos terroristas daqui e os que moram em outros países. Saí da vida pública no momento certo, pelo menos agora não sofro tanto com tudo o que vem ocorrendo. Não sentirei culpa quando esse país virar do avesso. Aquele repórter não queria mesmo saber muito. Eu teria muito que dizer, mas prefiro meu silêncio. Não foi esse país que eu sonhei e não foi para que as coisas tomassem esse rumo que eu governei o Brasil. Estão perdendo as rédeas e o controle esta ficando nas mãos de ninguém. Penso que a desordem vai reinar e os comunistas tomarão o poder. É esse Brasil que eu vejo diante dos meus olhos e da minha já avançada idade. Lamento profundamente.
Aqui do carro vou vendo o país que ajudei a construir. Vejo carros, muitos, nas ruas e lojas se multiplicando, oferecendo produtos que antes eram artigos de luxo. Vejo TV’s, geladeiras e outros tantos eletrodomésticos à venda. Vejo um povo sorridente e bem menos preocupado com a segurança. A bandidagem pensa muito bem antes de agir. Mas vejo tudo desmoronando. Agora querem deixar que todos falem, que pensem e expressem, que os jornais publiquem o que bem entendem e promovam a baderna geral. Nosso presidente esta rasgando a cartilha da Revolução e permitindo que aconteça tudo o que nós conseguimos segurar.
Enquanto vou observando a vida que passa pela janela do carro, vou me perguntando se realmente o que vejo é a concretização dos nossos sonhos. No calor do Rio de Janeiro, percebo o calor da vida agitada que tive, mesmo na fria Bagé, minha terra natal, quando comecei meus estudos. Foi uma longa vida, tão diversa quanto as paisagens que se modificam de dentro desse carro. Vejo lá fora o mar, passei pelas favelas, vejo o trânsito tumultuado e o progresso por toda a parte. Posso ver ao longe a menina dos meus olhos, a Rio-Niterói. Que país grandioso temos ao nosso olhar!
Ainda ouço os aplausos no Maracanã. Aquele som mirabolante foi a melhor canção que um homem poderia ter ouvido. Meu Brasil amado havia ganhado a Copa do Mundo, estávamos numa alegria incontida e incontrolada. Acusam-me de ditador, de ser opressor e de mais uma centena de adjetivos que não absorvo para eu mesmo. Não sou nada disso, até exigi a reabertura do Congresso para minha posse. Este Brasil nunca viu nada igual ao meu tempo. Explodiram obras, progresso, tecnologia por todo o lado. O Brasil teve um salto de qualidade inigualável. Onde estão os guerrilheiros, o que aconteceu com os assaltantes de banco, com os sequestradores? Acabei com todos. Ninguém brincou no meu governo. Agora estão aí, a liberar tudo e a anistiar precocemente os exilados e prisioneiros.
É. Realmente o Brasil esta mudado. Fica difícil para um homem como eu andar por aí sem se incomodar. Fico lembrando minha luta nesse país tão grande, para que conseguíssemos organizar tudo e entregar aos civis um país sem badernas e confusões. Aqui esta o resultado. Ainda vejo muito do que fiz, mas com desgosto percebo um fim melancólico de nossa revolução. Fico relembrando a usina de Itaipu, fico lembrando das estradas que rasgam esse país imenso e une pessoas. Tanto sacrifício, tantas dificuldades...
Às vezes também fico imaginando se não utilizamos de força além do necessário. Foi preciso, não havia como ser diferente. Era um mal necessário. Confesso que muitas vezes fiquei imaginando choro de mães e pais de terroristas que os perderam, afinal sou ser humano e não poderia nunca sentir o prazer sádico do qual me acusam em destroçar meus semelhantes. No horizonte do Brasil vejo um tempo que se aproxima, e, honestamente, fico feliz em saber que não vou vê-lo. Eu o temo. É até estranho dizer assim, mas se há algo que temo é ver esse país perder o rumo.
Paro o carro diante do mar. Diante das ondas indo e vindo relembro ainda os meus tempos de presidência. Tantas realizações, tantos acertos e certamente tantos erros. Um homem já de idade avançada não tem como escapar das reflexões necessárias quando já se vai dobrando a esquina. Esse país apesar de tudo vive tempos áureos, apesar de não saber até quando. Imagino meus netos brincando na escola e sendo apontados como descendentes de um ditador. A abertura política de Figueiredo pode me colocar mal na história. Eu passo a ser a parte ruim desta revolução. Fizemos o que devíamos mesmo ter feito, mas sei que as denúncias tantas nos colocaram em xeque diante da sociedade. Ah meu Deus como eu daria tudo para não ser lembrado assim. E ainda não posso esconder que tenho minhas convicções ainda plenamente lúcidas. Isso me incomoda. O que me alivia é ouvir o barulho dos aplausos do Maracanã que ecoam continuamente em minha alma, e a euforia do povo brasileiro quando perceberam o milagre que acontecia neste país. A história dirá quem eu fui. Dará uma resposta que nem eu mesmo sei qual é.
Sinto a vida esvaziar-se em mim. Ainda sou cumprimentado nas ruas e por isso torno-me para mim mesmo um homem complexo e indefinido. Acredito no que não queria, creio que não se deve fazer o que talvez esteja correto. Sou um homem, não posso me abdicar desta condição. Penso que vou passar como um governo ambíguo, o governo de Emílio Garratazu Médici será daqueles indefiníveis por longo tempo. Progresso e tortura, euforia e crescimento, são as marcas que oferecem ao meu trabalho. Aceito umas e rejeito outras. Amo meu país e quero que ele seja tão vigoroso e forte como o mar, tão profundo como a alma humana e tão infinito como o céu. Sigo aqui meu caminho ainda observando. Calo-me diante das mudanças, pois o silêncio diz o que penso e não me vejo mais em condições de emitir juízo de valores. Meu tempo passou. Outros tempos virão, outros homens, outras ideias, outros ideais. Deixei meu recado, meu legado fica em cada esquina desse imenso país. Isso não tirarão de nós. Afinal, o corpo se vai, a alma permanece. Para sempre.