O mau trato maltrata

Uma professora, psiquiatra, ao se dirigir ao seu carro de volta do trabalho, depara-se no estacionamento com um cão abandonado, mal cheiroso, mal cuidado, mas de olhar cativante e achou-o bonito. Resolveu adotá-lo. Idas ao veterinário, cuidados e enxoval completo. Era uma cadela; depois de um bom trato percebeu que parecia que era de “boa” raça. Já adulta, sua altura ultrapassava os da raça que parecia originária. Seus pelos brancos e longos arrastavam pelo chão e chamavam a atenção.
Inspirada na famosa modelo, chamou-a de Bundchen. Sua Gisele passou a ser sua outra ocupação; tornou-se companheira e amiga. Passeando com ela no parque, um senhor a interrompe, encantado com a cadela, pergunta-lhe que raça era aquela. A dona ficou embaraçada e falou: “É Bündchen da Noruega”. O senhor ficou satisfeito e elogiou a linda raça; ela, orgulhosa por não ter falado que era vira-lata.Saiu rindo com a sua criatividade momentânea, por ter inventado uma nova e especial raça.
A vida mansa e feliz prolongou-se por pouco mais de um ano, entre as duas. Um dia, estava dirigindo e conversava com um colega ao lado. A Bundchen sempre no banco traseiro, só que neste dia a janela do carro havia, por descuido, ficado aberta. Ao chegar ao destino, o espanto, a tristeza, a má, triste surpresa e decepção: Bundchen havia fugido, ou pulado em algum sinal de trânsito. Foi um desespero, percorre-se todo o trajeto feito, anúncio em jornais, procura incessante e nada. A natureza real foi mais forte. Abriu mão do conforto,de viver sem nome, do cuidado, mas quis viver sem dona e seu instinto animal foi mais presente. Perdeu-se na vida. Ela não foi abandonada; abandonou sua dona.
Sobre moradores de rua, lembro de um filme que me impressionou quando assisti: “O Pescador de ilusões”. Conta duas histórias, uma de um locutor de rádio que fazia um programa de falsa auto-ajuda. Um ouvinte psicopata, segue os conselhos e mata umas pessoas em um bar. O locutor com depressão e um forte sentimento de culpa vai viver nas ruas. Um outro, só que era bem sucedido e professor de História, após uma tragédia, tem surto psicótico pós-traumático e vai, também, viver como mendigo, nas ruas. Em seus surtos acreditam em suas alucinações; confundem a fantasia com a realidade. Estabelece uma amizade entre eles, possuidores de personalidades ambíguas e desestruturadas. Aborda, o produtor, muito bem a depressão e a psicose. Um ótimo filme que faz a gente querer ver de novo e uma lição sobre as doenças mentais.
Quantas vezes não me questiono sobre a história que está por trás de quem é mendigo. Se uma cadela abandonada enternece, muito mais um ser humano. Há uma história que conheço o autor. Chegou em um Hospital do estado, um mendigo. Ninguém quis cuidar dele; tinha sido levado por um camburão. O diretor do hospital deu um banho, cuidou da sua aparência, tratou de suas feridas e um belo homem apareceu. Possivelmente havia comprometimento mental e é possível que tenha voltado às ruas, tal qual a Bundchen, embora com esta última havia a adoção e com o homem não havia como adotá-lo. A ficção imita a vida e a realidade pode parecer ficção. Seja como for, o mau trato mental ou físico maltrata a aparência e a alma.
Edméa
Enviado por Edméa em 03/08/2011
Reeditado em 03/08/2011
Código do texto: T3137099