O prazer da leitura

[Palestra que apresentei aos alunos dos cursos de Pedagogia, Letras e Matemática da Faculdade de Pará de Minas em 15 de abril de 2011].

Obs: a linguagem deste texto procura se aproximar da linguagem oral que eu utilizei na palestra.

Antes de começar, eu gostaria de esclarecer uma coisa para vocês: eu não sou especialista em literatura. Sou apenas um leitor apaixonado por livros. E a minha apresentação hoje não é nada mais do que um depoimento sobre a minha experiência pessoal com os livros [sobre a minha paixão pelos livros], desde a infância até os dias de hoje. Por isso não esperem de mim erudição, palavras difíceis, análises de conceitos, teorias, metodologias, técnicas de leitura, porque a literatura não é a minha área de trabalho, o meu objeto de pesquisa. Eu leio romances, contos, livros de história e poemas por puro prazer.

[Slide 01: trecho de um texto de Rubem Alves]

Vou começar lendo um pequeno texto do Rubem Alves sobre a aprendizagem da leitura [que, para ele, é diferente da aprendizagem das letras], porque foi algo que eu vivi e foi muito importante para que eu me apaixonasse pela leitura. Ele diz o seguinte: “A aprendizagem da leitura começa antes da aprendizagem das letras: quando alguém lê e a criança escuta com prazer. Erotizada – sim, erotizada! – pelas delícias da leitura ouvida, a criança se volta para aqueles sinais misteriosos chamados letras. Deseja decifrá-los, compreendê-los – porque eles são a chave que abre o mundo das delícias que moram no livro! Deseja autonomia: ser capaz de chegar ao prazer do texto sem precisar da mediação da pessoa que o está lendo”.

[Slide 02: IMAGENS: fotos da Coleção Disquinho e de uma mulher lendo para uma criança]

Eu vivi essa aprendizagem da leitura de duas formas. Quando eu tinha 4-5 anos, no início dos anos 80, eu mantinha contato com o mundo mágico da literatura através dos disquinhos de historinhas da coleção Disquinho, lançada na década de 60 pela gravadora Continental; e através das leituras que a minha tia fazia para mim [a querida tia Leda], com toda a paciência do mundo: contos de fadas, cheios de ilustrações, que ela lia e relia inúmeras vezes; e eu sabia que as histórias dos disquinhos estavam também ali, naqueles livrinhos que ela lia com tanto carinho: às vezes as mesmas historinhas: Branca de Neve, O Patinho Feio, Joãozinho e Maria.

[Nos disquinhos, alguém também lia para mim! Sua voz saía de dentro daquela caixa mágica (uma radiola colorida), abrindo as portas de um mundo encantado, que me deixava maravilhado].

O encantamento se deu aí, nessas leituras ouvidas que eu escutava com prazer; e, por isso, quando eu aprendi a ler, aos 6-7 anos, eu já amava a leitura. Ou seja: o encantamento pela leitura, o prazer da leitura, o que o Rubem Alves chama de “aprendizagem da leitura”, veio, para mim, antes da aprendizagem das letras.

[Slide 03: trecho de um outro texto de Rubem Alves]

É o que o Rubem Alves reforça aqui: “Vejo, assim, a cena original: a mãe ou o pai, livro aberto, lendo para o filho... Essa experiência é o aperitivo que ficará para sempre guardado na memória afetiva da criança. Na escola, o professor deverá continuar o processo de leitura afetuosa. Ele lê: a criança ouve, extasiada! Seduzida, ela pedirá: ‘Por favor, me ensine! Eu quero poder entrar no livro por conta própria...’”.

Foi assim que eu aprendi a ler, em 1982, aos 6-7 anos, já seduzido pela leitura; e em 1984-85, com 9-10 anos, eu comecei a voar sozinho, escolhendo meus livros na biblioteca, lendo sozinho, com enorme prazer.

[Slide 04: IMAGENS: foto antiga da escritora Maria José Dupré ao lado de fotos das capas de três de seus livros]

Minhas primeiras leituras dessa fase [quando eu comecei a entrar no livro por conta própria, com mais autonomia e liberdade] foram as aventuras do Cachorrinho Samba, de Maria José Dupré: “O Cachorrinho Samba”, de 1949; “O Cachorrinho Samba na Floresta”, de 1952; e “O Cachorrinho Samba na Fazenda”, de 1967, livros que foram relançados, nos anos 80, pela editora Ática. Era delicioso acompanhar as peripécias do Cachorrinho Samba e os perigos que ele enfrentava. São histórias repletas de aventura, suspense, emoção. Não dá para esquecer.

[Slide 05: IMAGENS: fotos das capas de mais três livros de Maria José Dupré. Logo abaixo, o texto: “O caldeirão mágico de Maria José Dupré”]

Depois eu li outros três livros de Maria José Dupré, que ela escreveu antes mesmo de escrever as aventuras do Cachorrinho Samba: “A Mina de Ouro”, de 1946; “A Montanha Encantada”, de 1945; e “A Ilha Perdida”, de 1944. Foi com esses três livros que eu me senti pela primeira vez [ou talvez de forma mais intensa] como se eu estivesse dentro do livro, vivendo todas aquelas aventuras, sentindo o que os personagens sentiam: medo, alívio, alegria, tristeza, prazer, fome, sede... Lembro-me como se fosse ontem quando eu me fechava no quarto para ler “A Mina de Ouro”, e não queria parar enquanto não acabasse [e eu não queria que acabasse].

Maria José Dupré era uma feiticeira, uma bruxa boa: do seu caldeirão mágico saíam histórias que encantavam e encantam até hoje [feitiçaria pura]. Eu fico pensando...Quando eu comecei a ler os seus livros, em 1984, aos nove anos, ela faleceu, aos 86 anos, deixando esse presente maravilhoso para todos nós...

[Slide 06: IMAGENS: fotos do escritor Marcos Rey e das capas de dois de seus livros infanto-juvenis, publicados pela editora Ática]

Em 1987, aos onze anos, eu descobri um outro feiticeiro, com uma imaginação prodigiosamente fértil para o lado do crime, do enigma, do mistério: Marcos Rey. Agradeço muito a esse escritor porque foi ele que me abriu as portas para o universo fascinante das histórias de detetive. [Suas histórias dedicadas ao público infanto-juvenil são aventuras policiais e de suspense que têm como cenário a cidade de São Paulo]. Em resumo, o que aconteceu foi o seguinte: em 1980 ele foi convidado pela editora Ática para escrever livros infanto-juvenis. Não era a praia dele, mas ele aceitou, e o primeiro que ele escreveu, em 1981, foi um sucesso estrondoso: “O Mistério do Cinco Estrelas”, que de lá pra cá já vendeu mais de três milhões de exemplares. E a partir desse livro ele não parou mais: escreveu para adolescentes até morrer, em 1999.

[Slide 07: IMAGENS: fotos das capas de mais três livros de Marcos Rey]

Aqui estão outros livros da coleção Vagalume, da editora Ática, que o Marcos Rey escreveu nos anos 80: “Enigma na Televisão”, de 1986; “O rapto do garoto de ouro”, de 1982 [que é uma espécie de sequência de “O Mistério do Cinco Estrelas”]; e “Sozinha no Mundo”, de 1984 [na minha opinião, um dos melhores].

[Slide 08: IMAGENS: fotos da escritora Stella Carr e da capa do seu livro “A morte tem 7 herdeiros”]

Como eu disse, o Marcos Rey me abriu as portas para o universo da literatura policial, das histórias de detetive; mas quem me jogou lá dentro mesmo foi a Stella Carr, essa outra feiticeira maravilhosa. Fiquei triste, porque, ao preparar estes slides, eu descobri que ela faleceu, em 2008. Mas não importa; ela continua viva em seus livros, nas almas daqueles jovens que a leram, como eu. E o primeiro livro dela que eu li foi este aqui, em 1988: “A morte tem 7 herdeiros” [que ela escreveu junto com o Ganymédes José, também falecido], que tem como subtítulo a seguinte frase: “A noite em que Agatha Christie visitou Jacurussunga”. É uma história que te prende do início ao fim: o cenário é uma enorme e lúgubre mansão, e os personagens são um ricaço que é assassinado, seus sete herdeiros [os sete suspeitos, todos reunidos na mansão na noite do crime] e um detetive para descobrir o criminoso, claro. Não dá para explicar em palavras o prazer que essa leitura me proporcionou. E eu ainda fiquei com aquela coisa na cabeça: Quem é essa Agatha Christie? [Eu sabia que era uma escritora estrangeira, mas só isso]. No livro ela só aparece no final, em espírito [uma fumaça], mas não há nenhuma explicação sobre ela. Eu só fui descobrir depois.

[Slide 09: IMAGENS: fotos das capas de mais quatro livros de Stella Carr]

Assim que eu terminei de ler “A morte tem 7 herdeiros”, fui correndo na biblioteca de Pará de Minas para saber se ali havia outros livros dessa escritora. Surpresa maravilhosa: a biblioteca tinha quatro livros dela, todos escritos no final dos anos 70 e início dos 80: “Estranhas luzes no bosque”, “O Segredo do Museu Imperial”, “O Caso da estranha fotografia” e “O Enigma do Autódromo de Interlagos”. Em quatro dias eu li os quatro livros: um por tarde. Eu estava na sétima série, tinha 12-13 anos; eu lia no sofá da sala, ficava 5-6 horas direto lendo, sem parar.

[Slide 10: IMAGEM: foto da capa de um livro, de uma antiga coleção de capa dura, de cor vermelha]

Enquanto isso, eu passava pela estante da sala de televisão da minha casa e via uma coleção de livros, todos iguais, capa dura, vermelha, com duas cartas de baralho e um revolver [soltando uma fumacinha] desenhados na capa: só, nenhuma outra ilustração. Era uma coleção de livros de Agatha Christie, que pertencia à minha mãe. Eu passava ali, desconfiado, pegava um, folheava, lia uma parte ou outra: nenhuma ilustração, letras pequenas; e eu pensava: será que eu encaro?

[Slide 11: IMAGENS: fotos das capas de mais quatro livros de Stella Carr]

Enquanto isso eu esgotava a obra de Stella Carr. Em 1988 meu pai pediu a um amigo dele, que tinha ido a Belo Horizonte, para comprar uma listinha de outros livros dela para mim: “O esqueleto atrás da porta”, “O caso do Sabotador de Angra”, “O Fantástico Homem do Metrô”, “O incrível roubo da loteca” e outros. Eu me lembro bem do dia que esses livros chegaram. O amigo do meu pai se chamava Jurandir [já falecido], e quando ele chegou, eu já estava ansioso: ele trouxe o pacote, amarrado com barbante, que eu abri com enorme prazer. Li tudo em menos de duas semanas.

[Slide 12: IMAGEM: foto do cartaz original do filme “Morte sobre o Nilo”, baseado em um livro de Agatha Christie]

E nessa mesma época, uma vez, à noite, eu assisti com a minha mãe a um filme, que passou na rede Globo, chamado “Morte sobre o Nilo”, baseado em um livro de Agatha Christie. O filme era enorme, quase três horas de duração, e eu fiquei ali, grudado, até durante as propagandas, pensando, tentando solucionar o mistério.

[Slide 13: IMAGEM: foto de uma das últimas cenas do filme “Morte sobre o Nilo”, de 1978].

O filme “Morte sobre o Nilo” me mostrou que as tramas de Agatha Christie tinham como estrutura narrativa algo muito parecido com o que eu tinha encontrado no livro “A morte tem 7 herdeiros”, de Stella Carr [que havia copiado a fórmula de Christie]: várias pessoas suspeitas reunidas em um determinado espaço, um crime [normalmente um ou vários assassinatos] e um detetive para descobrir quem, como e por que matou. No caso do filme e do livro “Morte sobre o Nilo” [o livro é de 1937] foram três assassinatos cometidos num barco durante uma viagem pelo rio Nilo, e lá estava também o detetive Hercule Poirot, criação imortal de Agatha Christie, um dos detetives mais famosos da literatura policial.

[Slide 14: IMAGENS: fotos da escritora Agatha Christie e das capas de três de seus livros]

E rapidamente eu descobri que ali eu poderia deitar e rolar, porque Agatha Christie, na sua longa carreira de escritora policial, escreveu mais de 80 livros.

Em 1988 eu comecei então a ler Agatha Christie, a rainha das feiticeiras [além de rainha do crime], e depois de já ter lido tudo, fui relendo e relendo; aprendi a ler em inglês, li Agatha Christie em inglês; aprendi a ler em francês, li Agatha Christie em francês; aprendi a ler em espanhol, li Agatha Christie em espanhol, e nunca me cansei. Ainda hoje é um prazer imenso ler e reler Agatha Christie. Diversão pura.

[Slide 15: IMAGENS: fotos da capa do livro “Assassinato no Expresso do Oriente”, de Agatha Christie, e de uma cena do filme baseado nesse livro]

Uma experiência inesquecível foi a minha leitura do livro “Assassinato no Expresso do Oriente”, de 1934. Era um feriado, um dia santo, se não me engano; eu comecei a ler o livro de manhã bem cedinho e só fui terminar por volta de 10 da noite: li direto, parando a leitura só para ir ao banheiro ou para comer alguma coisa. Quando eu lia a solução do mistério, nas últimas páginas, caía uma tempestade lá fora, com raios e trovões, e no livro [na história] nevava abundantemente. Foi emocionante!

Fui um adolescente reservado, conversava pouco, saía pouco. Mas não fui um jovem solitário por causa dos livros. Só que para ler tanto, a gente acaba tendo que abrir mão de um contato maior com as pessoas, pois a experiência da leitura é solitária. No entanto, eu acho que eu soube dosar bem a minha solidão no mundo dos livros com o meu contato com as pessoas [com algum prejuízo, talvez, para o contato com as pessoas]. Lembrando que, como disse Rubem Alves, a solidão da leitura não é uma solidão como as outras. É uma solidão que é, ao mesmo tempo, uma comunhão entre a alma do leitor e a alma do escritor. Você não está só quando está lendo. Você até viaja lendo, conversa com os personagens, pensa junto com o escritor.

Agora, para terminar, eu gostaria de homenagear os dez escritores [e seus livros] cujas almas mais entraram em comunhão com a minha, nesses anos todos [na verdade são nove escritores e dez livros, porque um escritor escreveu dois livros da minha lista]. Fiz uma seleção rigorosa, e aqui estão eles:

[Seguem dez slides, cada um com a capa de um livro e a foto do seu autor, com os seus anos de nascimento e morte (quando mortos). Para cada um eu fiz, de improviso, um comentário emocionado]:

O Encontro Marcado (Fernando Sabino); O Retrato do Rei (Ana Miranda); As Brumas de Avalon (Marion Zimmer Bradley); Coiote (Roberto Freire); Bufo & Spallanzani (Rubem Fonseca); Romance Negro (Rubem Fonseca); Cem anos de solidão (Gabriel García Márquez); O Lobo da Estepe (Hermann Hesse); Trem noturno para Lisboa (Pascal Mercier); A morte de Ivan Ilitch (Leon Tolstoi).

E viva o livro! Viva a leitura! Viva o prazer de ler!