OS BONS MORREM JOVENS...

Era natal...

Não sei exatamente o motivo, mas tenho certeza que o natal só me traz tristeza.

A época da reunião familiar, do amor ao próximo e da troca de embrulhos nunca contagiou meu coração.

O natal é gol contra!

Não ter meu mentor me ladeando e nem financiando os impulsos varejistas da minha genitora agravam a ojeriza ao jingle bell.

O pessoal da Vila Ideal se contorce para entrar no clima. Acredita que tem descarado que esquece até de honrar as dívidas quando ouve os passos do trenó?

Juro!

É só vadiar pelas vielas para se maravilhar com os casebres enfeitados, as luzes piscando exaltadas e as miudezas agarradas nos pinheiros secos.

Minha angústia é indisfarçável.

Tenho o dom de clicar o frisson sempre em seu pior ângulo.

No último niver de Cristo recebi uma proposta empregatícia do shopping Karçakurta que me forçou à encarar a folia e imitar Santa Claus.

O nobre ofício consistia em abrilhantar os olhinhos ingênuos, dar-lhes esperança e colaborar para a felicidade geral...do patrão.

Os sonhos eram semelhantes. Meninos pediram playstation e as meninas queriam ser modelo. Vez em quando uma criança me surpreendia puxando minha barba ou colando meleca no meu manto.

Era uma fábula!

Na véspera da festa, estupidamente estressado, avesso aos sinos e sacolas, submisso à ostentação, avistei um menino magrelo e mal trajado padecendo em uma cadeira de rodas.

Esmolava moedas.

Fitei-o por um longo tempo. Percebi que os transeuntes desprezavam a frágil figura.

Ele era invisível.

Aqueles que lhe lançavam migalhas não agiam com benevolência, mas unicamente para desfrutar da sensação delirante de superioridade ante o flagelo alheio.

Cadê Jesus?

-Qual é o seu nome filho?

-Me chamo...Leon.

O coitado estava afogado em complexos.

O traje típico me ajudou a cativar o garoto. Leon me revelou que tinha sete anos, desconhecia o pai e que a mãe trabalhava defronte ao shopping.

Déjà vu!

Papeamos longamente até o gerente do estabelecimento intervir e ordenar aos seguranças a deportação do guri.

-Ô pivete, se manda!

-Peraí!!!-Comprei a briga...fiado.

Armei um barraco no hall do castelo, motivando meu chefe a me maltratar.

-Fora daqui os dois!-sugeriu meigamente.

Enquanto saíamos, por livre e espontânea pressão, observamos a pose das madames, ornamentadas com joias folheadas. Atentamos também para os engravatados, emitindo pré-datados para mimar a prole.

Minha tia Luzia sempre dizia que "Em algum momento da vida os tolos e todo o seu dinheiro terão que se despedir um do outro".

É vero!

O Leon garimpou uns trocados que havia esmolado e comprou um panetone no Bar Salutar. Levei-o até a praça onde pequenos e pequenas purificavam as almas banhando-se no chafariz.

Eles cearam conosco.

Todos, tal qual o Leon, desfilavam figurinos desprezíveis que contrastavam com a pompa do período e harmonizavam com o pesar de seus semblantes.

O tesouro deles ficava por dentro.

"O dinheiro tem o dom de apartar a realeza do bagaço social".

À noite as crianças improvisaram uma bola e brincaram de futebol no canteiro da praça.

Jogavam para fintar a fome!

Eu, ainda vestido de Noel e o Leon despido do sentimento de inferioridade que por tanto tempo trajara.

Os peraltas corriam descalços numa sinfonia de sorrisos idealizada por qualquer maestro. Fizeram uma ciranda ao redor do Leon roubando-lhe um riso raro.

Ele não podia chutar, mas agarrava a bola entusiasmado, encantando a todos.

"Heróis existem".

Antes de ir para casa meu novo amigo fez questão de me abraçar:

-Feliz Natal...Papai Noel.

Chorei.

Um ano depois...Leon morreu vítima de uma doença incurável.

"Deus tava precisando de um goleiro no time do Céu".