Tempo de Colheita
Tempo de Colheita
Todo começo de ano, é a mesma coisa aqui na minha cidade... início de safra. Vem chegando gente do Brasil inteiro para a colheita da cana que começa. E com ela, chega o cheiro azedo do vinhoto que revira o nosso estômago pelas manhãs, e faz com a gente tenha vontade de ficar sem respirar. Quem mora aqui, já se acostumou com isso, mas para quem vem de fora, não é fácil de suportar. Mas já foi pior, antes havia também as cinzas caindo o dia inteiro, e agora isso só acontece à noite, deixando a herança negra para as vassouras quando o dia amanhece. É bonito chegar à minha cidade e enxergar os canaviais... É como um tapete de veludo verde se abrindo no horizonte e avançando pelos quatro pontos cardeais, sempre nas divisas com os outros municípios. Antigamente, era tudo lá pras bandas de Luz e Arcos. Agora, avança no quintal de todos os nossos vizinhos, cujos donos fazendeiros, desiludidos com as lavouras, resolveram arrendar as terras para o plantio da cana. É bonito admirar o horizonte, principalmente no cair da noite, quando o fogo vai tomando conta. Parece uma pintura renascentista, as chamas lambendo o céu, tingindo o horizonte de vermelho... De perto pode se ouvir o gemido da terra, o estalar das folhas que sucumbem como serpentinas verdes, enlouquecidas pelo carnaval do fogo. Assisto a esse espetáculo desde quando nasci. Ele já teve cenários românticos, naturalistas, realistas e agora, contemporâneos. Já não se vê mais a figura do canavieiro, presença marcante até os anos 80, em nossa cidade. O que a gente vê agora são carretas enormes, puxando vagões cheios de cana pela estrada afora, deixando nos rastros, os restos de folhas que caem pelo caminho. Sempre tem fogo no asfalto, chamando atenção para esses monstros que transitam de noite, carregando cana e perigo ao mesmo tempo. Antigamente, eram caminhões pequenos, carroceria com fueiros, onde a céu aberto se conduziam multidões de homens e mulheres, enrolados em molambos, vestidos como espantalhos para investir contra a cana, com seus facões. Saíam cedinho para a luta. E a gente que podia fugir desse destino, ouvia lá da cama o barulho incessante nas madrugadas das levas de gente para o canavial, cada um carregando sua marmita de bóia-fria, suas esperanças e seus medos, para enfrentar o corte com a foice e o podão, os bichos do mato e o fustigar do sol, que tingia todo mundo de negro. De longe, se ouvia a sirene avisando que o dia ia começar. E assim foram anos e anos, até o progresso chegar. Hoje as máquinas substituíram a maioria dos homens e avançam pelos campos recolhendo o que antes os braços faziam. Os homens procuraram outras formas de ganhar seu pão. Nasceram os rifeiros. Mas aí já é outra história.