Sinto Muito
Sinto muito

          Como escrevem bem esses modernos portugueses ou afro-lusos: Gonçalo Tavares, António lobo Antunes, Agualusa, Mia Couto e tantos outros. E agora este Nuno Lobo Antunes. Livro: Sinto muito. Crônicas sobre os seus primeiros anos de prática da medicina, no interior de Portugal e em Nova York, Estados Unidos. Sua especialidade: tumores cerebrais em crianças.
          A maioria de suas crônicas são dos dez anos passados nos Estados Unidos. Experiências no Instituto Neurológico de Nova York e no Centro Médico Columbia-Presbyterian, do qual ele que diz que “suas experiências dariam um livro”. Por que não escreve? Em Nova York ele teve pacientes das mais várias etnias. Pode distinguir o afeto do “abraço latino” e o distante “sory”, dos outros.
          Ele marra os casos, de forma muito serena e, às vezes, são casos até revoltantes. Como: “Houve um médico americano, ilibado pelo Alzheimer que, num par de doentes, deixou gravadas a navalha, na barriga da doente, as suas iniciais, como apaixonados na casca de uma árvore. O processo judicial foi de milhões, mas não pude deixar de sorrir ao reconhecer que tinha cumprido, graças a sua loucura, o desejo secreto dos meus colegas operadores”.
          Foi, aí, que eu me lembrei do caso de meu irmão Fernando, quando foi operado de uma hérnia ingual. Ele tinha nessa época uns sessenta e oito anos e era parkensoniano, por uns vinte anos, já. Antes da operação o médico abraçou-o e disse que a anestesia era local e não doeria, nada. E assim, foi. Passou a mão pela cabeça do operando e foi paramentar-se. A operação foi um sucesso. Três meses depois numa visita de avaliação, o médico passava a mão sobre o traço reto do corte, atravessado por umas poucas transversais dos pontos, e me dizia: olha Alberto, uma obra prima, uma obra prima! Será que seu desejo secreto era assiná-la?
          Mais adiante, ele conta: “outra vez, uma velhinha, a quem anunciei o estado terminal do seu neto pequenino, olhou-me nos olhos e disse em castelhano, sotaque sul-americano: “Espero, doutor, que tenha uma vida muito longa, e que sofra todos os dias a mesma dor que me causou. Ainda hoje essa maldição me faz estremecer. Porventura injusta tinha na sua raiz a sensação de que tinha traído a esperança em mim depositada. Se não se pode insultar Deus, que se mande para o inferno o homem que deveria ser a Sua mão.
          Seria uma leitura dolorosa não fosse o tom humanístico com que foi escrita. Em toda a minha trajetória de vida, nunca encontrei um médico que me passasse tal grau de humanidade. E olha que a relação desses encontros é muito grande. Não só para mim, mas para minha mãe, irmã e irmão, aos quais assisti até os seus últimos momentos. Vidas longevas, portanto necessitadas de cuidados. E as vezes é tão simples, o que o doente mais precisa “É de olhares. É de olhares que eu preciso”, doutor. Pois tudo o que o senhor diz sem me olhar “é bula de medicamento”. Ah, Nuno, Nuno será que és assim, mesmo. “Sinto muito”, mas é difícil de acreditar-te.
Alberto.
 































Alberto Soeiro
Enviado por Alberto Soeiro em 01/08/2011
Reeditado em 03/08/2011
Código do texto: T3133579