Compania

É um dia qualquer, dum ano que já foi, numa escadaria de pedra, num morro de grama. Sentado nela converso com grande companheiro, segurando numa mão uma garrafa que contém suspeito líquido. Deixo que a brisa tenha um momento só seu, em silêncio puro e intocado, antes de falar com aquele que acompanha-me desde sempre. Ergo a garrafa num brinde:

-Um gole por ferida no peito.

-Um gole por choro que não veio.

-Outro por riso furtado.

-Mais um pelo beijo não recebido.

Sorrimos ambos. Deixando de lado a brincadeira, continuo:

-Cara, hoje tá foda.

- E não tá sempre?

-Sim, mas sabe quando você acorda com um vazio no peito, daqueles que fazem com que a morte pareça boa saída?

-Como sempre é.

Olho-o nos olhos, vejo neles uma tristeza irmã, a brisa passa outra vez, fazendo com que a relva, por cortar, dance uma música muda. Prossigo:

- E a família?

-Tanta coisa boa pra falar.

-Tá certo, desculpe.

-Deu merda com a tua e foi por isso que você me arrastou pra cá?

-Merda é uma constante pra esses lados.

-Sei como é.

Outra pausa, outro gole, um suspiro pesado preenche o ar antes que seja-me dito:

-Aí resolveu encher a cara logo cedo.

-Bem por aí.

-E me trouxe junto.

-Acompanhado fica menos feio.

-Lógico, metade da vergonha fica pra mim.

-Exato- pisco um olho.

Um passarinho cor de folha seca pousa num galho fino e fica a encarar-nos, olhinhos pretos fitando olhos vazios. Outra vez, não sou eu quem continua com o diálogo:

-Você não é burro, pelo menos não tanto, sabe que devia dar uma sossegada com a cachaça né?

-E você devia arrumar uma mulher.

Risadas, não desprovidas de pesar, alçam-se ao ar.

-Sério porra, cê já não ta todo ferrado?

-Você também, e está aqui, e não estou falando merda.

-Tô aqui porque você sempre me arrasta pra essas.

-Alguém tinha que me acompanhar.

-E se foder.

-Já dizia minha vovó.

-Que alguém tem que se foder?

-Isso mesmo.

Outro sorriso sem alegria e ele prossegue:

-Bem, quem sou eu pra te dizer algo.

-Na verdade, se tem alguém que me conhece e pode dizer algo, com conhecimento de causa, é a sua pessoa.

-E você me escuta?

-Escutar, escuto, mas dar importância? Acho que de tudo que me dizem, dou menos bola praquilo que vem de você.

-Por quê?

- Sei lá, ridículo né? Deveria ser completamente o oposto.

-Devia.

Mais um intervalo, mais um gole, mais pensamentos que nascem, frutos do silêncio. Guardo-os num canto qualquer da memória, retorno do devaneio quando é-me perguntado:

-E ontem?

-Que tem?

-Encheu a cara também?

-Opa.

-Cara, desde quando cê ta bêbado?

Coço a barba sob o queixo antes de responder uma indagação com outra:

-Que dia é hoje?

-Dezessete, eu acho.

-Ah, então faz uns quinze anos.

-Engraçadão.

-Como se você não soubesse o quanto eu bebo.

-Verdade. E aí, já superou aquilo que rolou com a garota lá?

-Qual delas?

-A que deu pro teu amigo.

-Duas fizeram isso. Mas na verdade, dois amigos comeram elas, pelo menos é como eu vejo.

-E aí?

-Aí que eles treparam e quem foi fodido fui eu.

-E o que você fez?

-O que eu podia fazer, bater neles?

-Era uma.

-Deu vontade, mas não seria uma boa.

-Então não fez nada.

-Fiz o de sempre, fiquei de quatro e deixei me enrrabarem.

-Que fineza.

-Não te trouxe aqui pra ficar enchendo meu saco.

-Cara, de mim cê não se livra, se te incomodo azar teu.

Odeio discordar de quem tem razão, então deixo a afirmação incontestada. A bebida amarga queima garganta abaixo, sinto a cabeça leve e o peito pesado, solto o ar num hausto sôfrego enquanto tamborilo com os dedos a garrafa.

-Sabe que é verdade.

-Sei.

-E aposto que sou a pessoa da qual você mais queria se ver livre.

-Infelizmente.

-É?

-É, não queria que fosse assim, mas fazer o quê?

-Pelo visto, beber.

-Sempre uma saída.

-Não das melhores.

-Não disse que era.

Levanto os olhos, a serra do mar ergue-se ao longe, no horizonte, parecendo um conjunto de morrinhos verdes, belos e inalcançáveis, como tanta coisa nesta vida.

-E vai fazer o quê hoje?

-Não sei, uma coisa de cada vez, não se atravessa uma ponte antes de chegar nela.

-Primeiro a embriaguez pelo visto.

-Pra não perder o costume.

Quando percebo, seguro uma garrafa vazia nas mãos, entristecido por não ter mais o que tomar, e contente pelo mesmo motivo, olho para o lado. Não vejo ninguém.

Então lembro, que ninguém iria acompanhar-me, fora eu mesmo.

Pietro Tyszka
Enviado por Pietro Tyszka em 01/08/2011
Código do texto: T3132231
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