DE VOLTA AO PASSADO
Quem sempre viveu e vive segundo os costumes e os ditames da vida interiorana, não é surpresa possuir espírito predisposto ao retraimento e a inibição. Naturalmente demonstra, o indivíduo, temor de viver o inesperado do desconhecido, aquilo que foge do seu controle, o que o afasta do seu lugar comum.
Marinheiro de primeira viagem, alheio aos procedimentos e as manhas praticadas naqueles mundos cosmopolitas, assim me encontrava para a aventura. Mesmo assim fui. Ou melhor, fomos. Arrumamos as malas e partimos, Maria Luiza e eu.
Setembro de 2006, a Espanha nos esperasse!
Sei que foi uma verdadeira aventura, mas eu devia isso ao meu pai. Quando ele morreu em 1950, deixou-me aos dois anos. Galego da Pontevedra, veio para o Brasil em 1896, então com 14 anos; veio só e nunca mais retornou . Manteve, entretanto, contato com sua irmã Benita até por volta de 1930. Depois, só o silêncio até sua morte em 1950.
Chegamos os dois a Lisboa por volta do meio dia; duas horas após, estávamos na cidade do Porto; seis horas, em Vigo, região da Galícia; dali, imediatamente partimos para Cañiza, cidadezinha onde moraram os antepassados de meu pai.
Início de setembro. Chegamos a noitinha. Chovia fino nos expondo ao rigor do vento, obrigando-nos a recolher ao hotel.
Pela manhã, felizmente o sol. O cartório do “ayuntamiento” funciona anexo a Prefeitura e não opuseram dificuldades para fornecer os dados sobre a família de meu pai. Localizaram àqueles a quem eu poderia me dirigir e, de sobra, ainda deram a certidão de nascimento dele. Quanta diferença! Exatos 110 anos de sua partida e ali estavam, devida e criteriosamente registradas, todas as informações da família!
Surreira Petán era onde devíamos seguir; região de pequenas propriedades rurais distante a poucos quilômetros da cidade. Lá, segundo as informações, encontraria Amanda. Não demoramos e o motorista estacionou o táxi junto ao meio fio da estreita rua de Surreira Petán. Ao lado, três mulheres conversavam sem dar atenção à nossa chegada; aproximando-me, cumprimentei-as ao tempo em que me apresentava, mostrando interesse em falar com a sra. Amanda. A mulher de pano preto na cabeça logo se interessou surpresa dispensando a outra a quem falava. Virou-se então para mim: “Amanda sou eu!” A surpresa agora mudara de lado; dividido entre a perplexidade e a emoção desfiei a estória de meu pai. Ela, emocionada me abraçou. Finalmente nos abraçamos, os quatro: Amanda, minha mulher, a mocinha e eu; ali, ainda permanecemos imóveis por um bom tempo chorando o encontro do presente com o passado.
Passada a emoção convidou-nos à sua casa, nas proximidades. Vim a saber tratar-se de Amanda Vieites, neta de minha tia Benita, falecida em 1980, portanto, prima em segundo grau. Restava, naquela tarde, mais confidências familiares seguidas de mais abraços e lágrimas por haver entre nós somente os sentimentos da recordação e da saudade.
Vieram os demais dias e com eles os velhos conhecidos da família, o cemitério onde, sepultos, se encontravam os Moure Gòmez; a capelinha do batismo de meu pai em 1882, a velha casa de porão onde ele nasceu jazia sob escombros ao lado de blocos de pedras medindo três palmos de largura, tamanha a robustez da construção. Meu pai, a quem eu pouco conheci, o que teria visto por aqui em sua meninice? Será que os seus olhos de menino viram as grandes manchas brancas no cordão de montanhas que se enxerga ao lado? Será que no final daquele século XIX já extraíam o precioso mármore de suas entranhas?
Foram quatro dias de aproximação, de conhecimentos. Convivemos seus costumes falando dos nossos, soubemos de suas dificuldades e desejos ao tempo em que confessamos os de cá, e, ao cabo de quatro dias, partimos para Santiago de Compostela, distante a pouco mais de hora via ônibus, pois o tempo nos cobrava partir.
Em Santiago, portentosas igrejas, majestosos conventos, túmulos de santos, objetos milenares e os tradicionais caminhos em sua volta, ditas pequenas peregrinações pelas imediações da cidade. Tudo muito fascinante, envolvente, cativante, séculos de história à nossa frente, embora duas coisas bem mais simples viessem particularmente seduzir-nos: dois fatos ocorridos em praças distintas. Na primeira delas, o encontro com o busto da consagrada poetisa galega Rosália de Castro, a quem coube o mérito de cantar a saga da debandada do povo Galego no século XIX, imortalizando em seus versos o sofrimento então vivido.
Na segunda praça, um espetáculo cuja maestria reviveu-me jovial energia: certa jovem solava um violino enquanto outra manipulava um pequeno esqueleto fantasiado acompanhando a música. Em seus requebros e volteios era admiravelmente perfeito. O pentelhinho dançava tal um John Travolta nos tempos da brilhantina; ao término, uma graça para a platéia: saltitando elegantemente sobre os ossinhos, executava coreografias dignas do incrível Baryshnikov. Valeram os cinco dólares deixados.
Naquela noite, seguiríamos de trem pela fronteira norte espanhola. Paris viria a seguir.