TORTURA - CRÔNICAS HISTÓRICAS
Estou perdendo o ar. Sinto um enorme sufoco dentro desse saco de lona. Posso sentir ainda uma última carícia da natureza: o cheiro do mar e a brisa suave que vem do oceano. Não sei onde estou, mas sei que também não estarei em mais lugar algum. O sol esta forte e sou levado para um lugar escuro e jogado numa cela solitária. Sinto chegar o fim, e honestamente, eu o desejo. Meu corpo não suporta mais as dores provocadas pelas constantes e violentas torturas que me impõem. Preso desde agosto, padeço uma paixão em etapas, sempre muito doloridas no corpo e na alma. Nestes meses, tive muito tempo para pensar, refletir, rever e perceber que nem tudo são flores nesta luta desigual.
O calor é forte. A certeza da morte é aqui mais intensa do que na vida de qualquer pessoa. Posso ver um ínfimo raio de sol por uma fresta e ainda continuo sentindo o cheiro do mar. O silêncio e a ausência de alguém aqui é de longe uma vantagem. Quando ouvir algum passo, entendo que serão meus instantes finais. Enquanto isso, me deito neste lugar imundo, relembro meus tempos áureos e revejo minha existência. Na solidão desta cela isolada neste lugar que ignoro, viajo até minhas parcas lembranças da Campo Belo em que nasci e do sossego daquele lugar em que era apenas uma criança despreocupada de tudo nesta vida. A juventude em São Paulo me trouxe o ideal revolucionário e me fez conhecer Denise, a única emoção que foi capaz de me fazer perder a cabeça. Como estará ela? E nosso filho, que fim terá nesse país governado por insanos?
Nesta prisão ainda me restam forças para relembrar companheiros da resistência armada ao governo. Muitos deles não estão mais entre nós e outros se encontram tal como eu, jogados em um lugar sujo, sendo torturados, maltratados, submetidos a todo tipo de crueldade. Acusam-nos de terrorismo, mas não começamos esse golpe, e falhou qualquer tentativa pacífica de contornar a situação cruel que nos foi imposta de uma ditadura. Fecho os olhos e vejo o rosto assustado de Denise quando me viu pela última vez: eu ali sentado naquela escrivaninha daquela sala que mais parecia uma câmara mortuária, cheio de ferimentos e marcas da tortura no corpo. O delegado Fleury deu um minuto, concedido pela sua benevolência malévola diante da minha recusa em me alimentar e falar. Nem deu tempo de encostar meus ouvidos na barriga grávida de minha esposa. Seus olhos torturados com a visão do inferno em que eu me encontrava é a última imagem que trago dela. Tentei libertá-la e cometi excessos naturais para um homem que vê sua esposa presa e sabendo-se dos níveis de tortura que ela poderia suportar. Minha filha, já deve ter quase dois meses. Sinto que não vou conhecê-la. É o preço de ter ousado sonhar tão alto. Talvez hoje entenda que era superior às forças e o alcance de nossas asas. Os olhos de Denise são talvez a maior dor que sinto hoje.
Estive envolvido com a luta armada pela liberdade. Muitos nos chamam de terroristas, mas desconheço terror maior do que o que me assola e flagela. No quarto dia de prisão eu já perdia os movimentos da perna esquerda. Tenho no corpo marcas profundas das torturas mais inimagináveis que alguém poderia sofrer. Não quero me tornar um mártir. Quero sobreviver e lutar pelos meus ideais, ainda mais agora como pai de uma nova vida que vai crescer neste país onde a liberdade virou artigo de luxo, que ninguém mais tem. Os companheiros de cela dizem que nunca viram ninguém ser tão torturado como estou sendo. O que me fizeram no corpo não doeu mais do que fizeram ao permitir um minuto apenas, bem cronometrado da visão de minha amada naquela sala podre. Aquele olhar esta fixado em minha alma e em qualquer lugar que eventualmente eu olhe. Fechando os olhos ele se aproxima de mim e me faz sangrar por dentro, tanto quanto sangro em meu corpo.
Eu sou o maior prêmio destes militares que aqui me mantém preso. Sei que de hoje eu não passo. Também não brinquei em serviço. Militei em inúmeros grupos e fundei o meu próprio: REDE (Resistência Democrática). Cometi inúmeros erros. Tenho dificuldade com esta palavra, mas não deixo de pensar nos que partiram por minhas mãos. Na verdade essa não foi uma opção, acabou tornando-se uma necessidade. Enfim, numa guerra se mata e se morre. Agora morro. Mas dei trabalho! Confesso que ainda tenho senso de humor, mesmo moído de dores para recordar os dribles na polícia. Fiquei louco quando prenderam Denise e fiz ameaças até ao comandante. Deixei-o preocupado com a história de sua amante que eu conhecia muito bem. Fico aqui imaginando a cara dele...
Mas não me orgulho de tudo. Muito excesso poderia ter cedido lugar a estratégias mais bem planejadas e bem estruturadas. Os seqüestros, por exemplo, eram um ótimo trunfo de negociações, e eu provavelmente estaria na lista de liberdade das ações dos nossos companheiros. Mas essa gente sabe lidar muito bem com as palavras. Ainda ouço o sorriso sarcástico do tenente Chiar ao ler em alto e bom som, a notícia de jornal publicando minha fuga. Eu morri naquele dia. Ninguém mais iria me procurar e ninguém mais exigiria minha liberdade em troca de alguém. Havia chegado meu fim.
Recordo como se fosse hoje a minha prisão. Vacilo de minha parte. Eu que tive tantos nomes e consegui sempre me afastar dos perigos, agora estou resumido a um apelido, o Bacuri, sem descendência ou ascendência, apenas um fugitivo à espera do golpe fatal. Eu precisava fazer algo pela minha esposa, e mais um sequestro de embaixador era a saída perfeita. Infelizmente fui apanhado nas preliminares. Mas eu sabia que aconteceria, mais dia, menos dia, enfim. Um guerrilheiro sabe das consequências de seus atos e seria muita ingenuidade minha, pensar que alguém tão valioso como eu para os militares iria escapar impunemente. Resta-me manter firme minha dignidade e meu silêncio. Nesses mais de cem dias de tortura ininterrupta, meu silêncio foi o grande provocador da ira dos meus algozes. Encontro-me aqui em pedaços, mutilado no corpo, já sem orelhas, com os dentes quebrados, hematomas incontáveis, queimaduras por todas as partes, choques violentos que deixaram meu corpo praticamente como uma sombra. Nem sinto mais as dores, tantas são elas. Sinto, no entanto a alma inteira, refeita a cada golpe, a cada violência. Na minha alma restauro meu nome, Eduardo Collen Leite, volto a ser eu mesmo, sem identidade falsa, o homem que pensou um Brasil melhor e que deixa a vida como herança, deixa as ideias como legado, deixa o sonho para que outros o realizem. Tive a coragem dos loucos e a ousadia insana de enfrentar o gigante destemidamente. Quando se tem um ideal, pouco importam as armas das quais dispomos para lutar. Quando temos certeza da injustiça, pouco importa o sangue e a guerra pela paz. Um paradoxo perfeito para corações livres e pássaros que voam pelo infinito, ora ao norte, ora ao sul, ora pra lugar nenhum.
Apesar das mutilações tantas e das dores do corpo, de ter praticamente perdido a sensibilidade, ergo minha cabeça para sentir o perfume suave do mar em meio a este calor intenso. Parece que me encontro numa prisão subterrânea. Não há janelas nem vejo luz. Já devemos estar no verão. Na prisão perde-se a noção dos dias, horas e lugares. Fleury me levou para “passear” tantas vezes, que não tenho a menor possibilidade de avaliar os lugares tantos que passei para ser torturado. Estou no litoral da nação que amo e que queria ver livre. Eu não verei, mas seremos livres, pois não há ditadura que dure sempre. Morro eu, outros virão, e mais outros, e mais outros...
Ouço vozes. São os soldados que se aproximam. Um deles é mandado a sair do lugar. Um frio corre pelo meu corpo. Pressinto a morte, o fim da agonia, o alívio das dores. Só tenho tempo de pensar em Denise, no seu sorriso quando éramos vitoriosos e naquele fatídico último olhar. Não choro, embora sinta lágrimas na alma. Chegam os soldados e me levantam na pia, para um banho de misericórdia. Um deles se vai. Sarcasticamente o major me encara nos olhos dilacerados e mostro a ele minha alma inflamada pela ressurreição da liberdade. É meu último olhar. Encaro meu algoz de frente, sem medo, corajosamente. Mais dignidade tem quem morre por uma causa do que quem mata por prazer. Ele é um cumpridor de ordens, inquestionável, uma máquina de terror. A mim, que ele mata, um homem.