A dita fala “errada”
“Os livro ilustrado mais interessante estão emprestado”. Esta frase tornou-se hit em jornais, telejornais, rádios e na internet depois que o MEC publicou o livro “Por uma vida melhor”, destinado à Educação de Jovens e Adultos. Você, certamente, condena que escrevam dessa maneira. Mas, sem sombra de dúvidas, já falou assim ou parecido. Não consigo imaginar alguém, até mesmo aqueles gramáticos mais conservadores, falando “se vós soubésseis” à mesa, num estádio de futebol ou no barzinho com os amigos no happy hour (segundo o deputado Raul Carrion, 'numa hora feliz'). Da mesma forma que ninguém seria louco de palestrar num seminário falando “e aí, pessoal, vim aqui dá um lero proceis”.
Esse debate formado acerca do falar certo/adequado ou errado/inadequado é muito interessante. Saem mais maduros do confronto de ideias os pró-livro do MEC e aqueles que são contra. E isso é ótimo. O que desagrada é perceber a quantia de informações desencontradas sobre esse assunto. O Jornal Nacional noticiou, na abertura da sua edição do dia 13 de maio, que o livro do MEC estaria “sinalizando nova classificação quanto ao uso da língua portuguesa”, deixando de encará-la como certa ou errada, passando a ser vista como adequada ou inadequada. Contudo, a fala já é compreendida como adequada ou inadequada por sociolinguistas há muito tempo.
Também se fala que a cartilha reza que escrevendo corretamente ou errado, tudo será encarado como certo. Isso não está no livro. Há muita gente que pega a informação no ar e já repassa, sem conferir a veracidade. Essas afirmações infundadas sobre o “Por uma vida melhor” são preocupantes.
A todo o momento fazemos construções de frases que, analisadas a fundo, agridem as normas gramaticais. Se estamos entre amigos, tampouco nos preocupamos quanto ao uso de gírias, comemos o “s” do final das palavras, cortamos o enunciado pela metade e concluímos o pensamento com um gesto. Conseguimos nos fazer entender? Claro, sem sombra de dúvidas. Vamos falar da mesma maneira numa entrevista para emprego? Lógico que não. E por quê? Por estarmos numa situação comunicacional totalmente diferente.
A escrita segue uma estrutura fixa, complexa e que não consegue atingir a fala. Porque quando falamos, a gesticulação e as feições faciais interferem muito na compreensão do que é dito. Já na escrita, não. Não tem cara de espanto no texto; no máximo, uma “exclamação”. E o que está impresso pode ser lido tanto em Porto Alegre quanto em Maceió, ao mesmo tempo ou em datas separadas. Daí a importância de se escrever uniformemente, de acordo com regras estanques.
Disso, pode-se depreender que não escrevemos da mesma maneira que falamos. A Semana da Arte Moderna, em 1922, rompeu com a literatura vigente e buscou aproximar-se mais da fala, da realidade. Mas essa “licença poética” dos modernistas do início do século passado servia apenas para romper barreiras de estética, de pensamento. Jamais se intencionou falar e escrever da mesma forma.
Não podemos negar toda a história de vida de quem não teve a oportunidade de estudar quando mais novo e que fala totalmente em desacordo com as normas gramaticais. Precisamos aceitar que a variação linguística utilizada por esses jovens e adultos que retornam aos bancos escolares depois de anos é uma maneira de comunicação. Não se trata de apologia, e sim, de aceitação. Negar esses dialetos seria como tapar o sol com a peneira, confabulando que esses cidadãos sempre falaram escorreitamente.
É papel inegável da escola possibilitar o acesso à forma de prestígio da língua. Se a língua é poder, aprender os meandros gramaticais dela é uma das maneiras de ascensão social que a escola propicia a seus alunos. Mas tudo isso, sem lhes negar a realidade da própria fala. Sem lhes negar quem são.