O Barão de Coubertin

Adorava correr! Sempre gostei!

Não! Na verdade, acho que nunca gostei de correr. Corria pela necessidade que via em praticar algum exercício e, como nunca tive muita habilidade com bola, só me restava correr. Sem bola.

Quando trabalhava na Refinaria Duque de Caxias, praticava diariamente a minha corridinha, na hora do almoço, no clube dos empregados. Muitos de nós, deixávamos de almoçar e trocávamos alguns gramas de comida por minutos de diversão e um pouco de exercício. Era nessa hora que eu corria na pista de atletismo, em torno do campo de futebol, vendo os colegas jogando e xingando, seus adversários e seus próprios companheiros de equipe (depois percebi que era essa a finalidade terapêutica daqueles jogos). Era uma verdadeira algazarra em que todos se esforçavam para demonstrar seu criativo repertório de frases e palavrões de efeito. Divertido!

Por conta desta minha prática descompromissada e que visava tão somente à manutenção de um mínimo de preparo físico, acabei confundido como um atleta de elite e fui compulsoriamente inscrito nas Olimpíadas internas, como um dos representantes da Equipe da Operação. Não queria aceitar o convite e usei de todos os meus argumentos para a recusa, mas infelizmente, cedi. Acabei sendo convencido pelo Diretor da Equipe que, ardilosamente, disse não haver mais “atletas” disponíveis e, citando desde Jesus Cristo até o Barão de Coubertin, conseguiu me inscrever na prova de... ciclismo (?!), porque, segundo ele, era aonde a “Equipe” estaria mais vulnerável.

Apesar dos meus protestos, baseados principalmente no fato de eu nem ter uma bicicleta, estava eu lá, dias depois, trepado em uma veloz máquina de corrida de metal leve, guidão curvo, selim desconfortável e pneus ultrafinos. Lá estava eu, alinhado com mais sete oponentes.

Antes do tiro de largada, as instruções dos juízes: seriam cinco voltas em torno do Parque das Bandeiras, perfazendo um total de dois mil metros e não seria permitida a troca de marchas, pois o percurso era plano e, para evitar que ciclistas mais habilidosos utilizassem de sua experiência, a organização da prova travou o comando de marchas na mesma posição. Todas as bicicletas foram fornecidas pela organização e distribuídas por sorteio momentos antes da prova.

Pow!

Partimos! Antes da primeira curva eu já era, disparado, o último colocado. Olhava estupefato para os adversários voando à minha frente e minha missão passou a ser, unicamente, não levar nenhuma volta de vantagem. Permaneceria na mesma volta dos líderes! Questão de honra!

Ouvia a gritaria da turba ensandecida torcendo pelos seus favoritos. Parecia estar no Coliseu, com leões vindo ao meu encalço! Percebi que alguns gritos dirigiam-se a mim. Pediam para que eu trocasse de marcha! Em todos os pontos da pista pediam para que eu trocasse de marcha! Mas era proibido! Não podia fazer isso! Foi então que observei que minhas pernas movimentavam-se muito mais rapidamente do que as de qualquer outro concorrente. Haveria algo errado com a minha bicicleta? Era a marcha! Só poderia estar travada no lugar errado! Minhas pernas a mil por hora e nada dessa danada correr! Os gritos de “troca a marcha” tornavam-se cada vez mais altos e minha cabeça já girava tão rápido quanto minhas pernas. Estava entrando num quase transe anaeróbico. Decidi trocar de marcha. Mexi na alavanca e... nada. Travada! Mexia e mexia e... nada mesmo! A infeliz não saía do lugar! (O líder acaba de me passar!).

Aumentei o ritmo das pedaladas e mantive as mãos nas alavancas de câmbio, na tentativa desesperada de trocar de marcha. Guidão solto! Uma temeridade! Permaneci lutando com as alavancas alguns segundos até que o segundo colocado me passa, seguido ferozmente pelo terceiro. Mudei de estratégia: larguei as alavancas de câmbio e passei a me concentrar apenas nos pedais e na redução da resistência aerodinâmica. Me encolhi todo sobre o selim e fechei meus cotovelos sobre as costelas. Lá vai o quarto colocado! Acaba de me passar pedalando lenta e suavemente. Que estilo!

Penúltima volta. Estou em oitavo e último lugar, mas pelo menos ainda na mesma volta de três concorrentes (o quinto, o sexto e o sétimo colocados). Seria uma honrosa missão garantir essa posição! Pronto! Ninguém mais me daria volta de vantagem!.. Passam duas bicicletas! Estou em último... mas ainda na mesma volta do sétimo colocado. Oh glória!

Última volta! Não ouso olhar pra trás. A gritaria recomeça. Por que estariam gritando para mim? Eu, o último colocado e o mais extenuado de todos (afinal nenhum concorrente havia pedalado mais do que eu). Minhas pernas giraram no mínimo o triplo do que as outras todas que vi passar. Tivera a infelicidade de ter a minha marcha travada no lugar errado? Sei lá! Será? Não havia mais nada a fazer. Chegaria na mesma volta do sétimo colocado e ponto final. Mas... acho que ganhei a simpatia de alguns assistentes. Eles gritavam palavras de incentivo pra mim. Tentei me concentrar e entender o que diziam. Sim! Era isso! O sétimo colocado estava próximo de mim! À minha frente! Acaba de aparecer a alguns metros de mim! Sim, eu estava mais rápido que ele! Ele e sua bicicleta estavam cambaleantes, nos últimos suspiros! Quase caindo de tão lentos! Impressionante! Era a minha chance de conseguir um resultado histórico e que, na minha mente febril, certamente passaria aos anais da Equipe da Operação e levaria à loucura a multidão de fãs que havia conseguido cativar!

Já na minha alça de mira, pensei no apoio que recebia e na possibilidade de chegar em sétimo, ganhando não um, mas dois pontos para a minha Equipe, acelerei! Acelerei e acelerei e, com minhas pernas em estado de gel, ultrapassei o adversário que, ao me ver à sua frente, deixou-se cair, completamente sem forças, no asfalto quente!

Glória das glórias! Foi então que me lembrei do que disse um amigo sobre suas competições de natação, na escola. Disse ele que “bebia a espuma das pernas dos primeiros, sentindo nela um suave gosto de champanhe”. Era aquele o gosto que sentia naquele momento.

Por não conseguir ficar de pé, deitei-me na grama, com falência total dos membros inferiores. Vista turvada pelo cansaço e corpo aparentemente desidratado, bebi a deliciosa e ilusória champanhe, em minha festa particular.

Com as pernas desintegradas porém já sentado na grama, recebo a calorosa visita do Diretor que me felicita pelos dois pontos conquistados e me informa que a corrida de 800 metros rasos iria começar em trinta minutos. Pondero que estou um pouco cansado para ir andando até a pista levar o meu apoio aos nossos companheiros de Equipe e que preferiria ficar descansando, ali mesmo onde estava. Ele fez um silêncio respeitoso e alguns segundos depois, com voz grave e solene anunciou que um dos nossos dois atletas estava com infecção intestinal (piriri) e seria substituído. Prendi a respiração o quanto pude e imaginei receoso algo totalmente absurdo. Absurdo que estava prestes a ouvir.

Acabava de ser escolhido para compor a Equipe e defender ao menos o importantíssimo ponto que cabeira ao oitavo e último colocado. Ponto, segundo ele, vital para as nossas ambições. Dessa vez citou Napoleão Bonaparte, Duque de Caxias, Simon Bolívar, General Custer, Joaquim Cruz e outros, sem esquecer o Barão de Coubertin. Disse que eu já estava uniformizado e que bastaria andar até a pista para cumprir a “missão”. E que, lá chegando, aguardasse o tiro de largada e...continuasse andando por apenas oitocentos metros.

Ponderei, agora com todos os argumentos já visíveis pela minha fadiga, porém ele me pediu que continuássemos a conversa no caminho para a pista.

Mas essa é outra história! Que outro dia eu conto!

Paulo Rego filho
Enviado por Paulo Rego filho em 28/07/2011
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