MAMÃE NÃO QUERO PROVAR NADA...

Várias vezes afirmei aos vilões da Vila que,no mundo da bola,existem três naipes de jogadores:o craque,o perneta e...eu.

Me enquadrava numa camada diferenciada de atletas,protótipo da perfeição.

As vaias estilingadas por todos os flancos eram rebatidas com autolatria e lances apoteóticos.

No entanto,a opositora mais ferrenha,causadora de danos morais incuráveis,habitava no meu bagunçado lar.

Mamãe me amaldiçoava toda vez que eu saia para bater bola.A praguenta vivia emprestando a língua pro diabo e até macumba com frango assado e champagne importado a satânica promoveu na encruzilhada.

O hobby preferido da jurássica era macular o meu cartaz:

-Vai pra roça catá argodão,muleque !-gritava em tom populista.

-Num foi eu que prantei !-retrucava sem tom de voz.

Minha tia Luzia sempre escrevia em suas rescisões contratuais que "Quem inventou o trabalho não tinha o que fazer".

Apoiada !

A mami sempre planejou que me tornasse um destacado operário, líder do proletariado,cultuado pelas turminhas roda-bolsinhas da Vila.

Meu sonho era outro.

Engabelei a coroa,protelando minha estreia na safra.

-Amanhã eu vou,hoje eu tô quebrado !

No meu jogo derradeiro,com a carteira assinada,sem chance de adiar a labuta,um lance ceifou o desejo da mamãe de me ver com o jaleco.

Quando tentei driblar o zagueiro dei uma derrapada barrichelliana e espatifei no terreno.

Que dor.

Minha tia Luzia sempre dizia que "As contusões são como os filhos,aparecem quando menos se espera".

Fiquei com torcicolo no corpo todo.

Vegetei por semanas no sofá,decepcionado com a indiferença da minha mentora com o meu martírio.

-Bem feito !-repetia quando me via.

Irado,maquinei uma vingança das trevas para a traidora.

Saravá !

Quando finalmente tirei o gesso a mamãe,temendo a reação,se regenerou e me alforriou.

Ela aprendeu que nada é mais pleno e empolgante do que acariciar as curvas da bola e perceber que a sua trajetória obedece aos nossos mais íntimos desejos.

A ranzinza notou que o efeito das mandingas é efêmero,mas a vibração futebolística é inesgotável.

Se a bandida pactuasse em benefício da coletividade ou no mínimo,em prol da família,eu juro que compreenderia, mas o conchavo com belzebú foi exclusivamente para o meu desgosto.

Imperdoável.

O feitiço virou contra a bruxa.

Na última sexta treze,durante a sessão umbandista,minha genitora incorporou o espírito de um finado atacante do time idealista.A salafrária correu pelo terreiro pedalando dribles,deixando todos vidrados.

O Tonhão,médium de médio porte,encarnou o espírito de um falecido beque e entrou de carrinho por trás e sem bola nas canelas secas da mamãe,derrubando-a de quatro no chão.

-Bem feito ! Mi zifio num faia !-martelei.

O pior foi que,discordando da expulsão,o pai-de-santo partiu encolerizado na garganta do exú,que arbitrava a contenda e,encarnados e desencarnados se associaram no terreiro do centro espírita.

Meu cãozinho Priguissa,mascote da irmandade,aproveitou o vaivém das pernadas e caiu de fucinho nas oferendas.

Na ceia da seita o sarnento encheu a barriga,mas ao degustar as iguarías evocou o espírito de um ex-namorado da mamãe e,no cio,passou dias atrás da pulguenta latindo insinuações.

Tadinha !

Minha tia Luzia,toda vez que via a orgia,silenciava o atabaque e tascava:

-Cachorro também é gente !

-E vice-versa !-eu rebatia.

JOGA ÁGUA FRIA !!!

Leandro Del Tedesco
Enviado por Leandro Del Tedesco em 27/07/2011
Reeditado em 15/01/2014
Código do texto: T3122060
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