A LOUCURA DE CONVIVER COM AS DIFERENÇAS

Nem mais sabemos se os menestréis estão vivos. Se ainda são trazidos pela impetuosa torrente dos anos, se este coro dos perdidos rememora as velhas canções que fazem asas para os sonhos. Se as fantasias que segredam aos olhos rútilos de prazer são as mesmas, e se ainda contam as incontidas emoções do balançar do corpo ao som das músicas que fizeram época em nossas histórias pessoais.

A mesa de bar ainda sabe dos rabiscos nos guardanapos, da catarse das angústias, inquietudes que falam num sussurro. Masmorras em que somos lançados pela solidão plena da guitarra dos dias. O aceitar – nem sempre doloroso – dos choques emocionais: o espanto do encontro e dos alumbramentos do amar. Estes que fazem a foz dos riachos sazonais em tempos de colheita.

Em antítese, o curso melodioso do decorrer dos tempos, sempre traído pela desarmonia entre os viventes, exclusões sociais e direitos políticos impostos pelos desumanos senhores do poder. O fio de sangue após a bofetada e a necessária contenção das águas por barragens de urgente ternura. Terras altas, sobranceiras sobre o leito de planície por onde transita o curso do querer amoroso. Também o mar encapelado das desavenças.

Ainda estão vivos os menestréis da cuba libre, do gim com tônica on the rocks, do halterocopismo competitivo comum aos vinte anos?

A nostalgia do som dos anos setenta, o fio de arame do trapezista da ditadura militar e o olor de novos tempos na liberdade buscada, enquanto se traduzia num queijo fétido a lira dos trinta anos.

Somos minúsculos frente ao tempo que passa. Esquálidos qual o fio de linha que trafega no olho da agulha. Estreito para os olhos, necessário para a tessitura quase sempre imperfeita.

É assim que os menestréis remontam a sua saga. O equilibrista embriagado de vida, felicidade fácil entre um e outro chope, e a mesma tensão na ponta dos dedos. A caneta tragicômica é o prolongamento mágico da angústia. Dentro de mim, no corpo que balança, que se assanha, claves-de-sol coroando o ritmo na pauta sôfrega que não segura a escala, o dó-ré-mi balbuciado na excitação da fêmea, a pureza da alegria de viver.

Porque a arte do transitar noturno por si já tem a seu talante o néon estrábico que os olhos bebem há tantos anos. O povo da noite olha pro alto e não tem pressa. Os parceiros do dia nem se observam, a não ser quando o dinheiro é o mote transitório das relações. Estes, vivem olhando para os sapatos em sua costumeira pressa.

Há um Montmartre (com gosto de absinto) nos cafés de Paris do século XIX. Bebericamos nos cálices de Monsieur Toulouse Lautrec, Degas, Manet, Monet. Os girassóis de Van Gogh enfeitam o seu chapéu boêmio e todos dormem o derradeiro sono em Arles, ao lado de Théo, o seu irmão rico.

A dançarina de can-can está vívida na memória e as “cocotes célebres do tempo de nossos pais” levantam mil saias rendadas. Observando a calçada de defronte, Fernando Pessoa segue “o fumo como uma rota própria” e bebe a sua alma perplexa, morrendo de cirrose hepática.

Depois, é a guerra dos pracinhas brasileiros e as cruzes brancas de Pistóia. Comovem-se as multidões no love-me do pós-guerra, tomando coca-cola, mascando chicletes. O disco de setenta e oito rotações arranha os ouvidos expectantes com o chiado das novidades. Nat King Cole, “negro como a asa da graúna”, em sua voz rouca e sensual, embala a posteridade, como já acontecera com José de Alencar, em Iracema, e nos relatos sobre a Guerra de Canudos, algumas décadas antes.

Sim, parece que os menestréis ainda estão vivos. Bebem, como nunca, a ânsia de saber. Parece ser sempre a última, a geração à qual pertencemos. Mas nunca somos os últimos a vivê-la.

Mesmo que Dom Neruda tenha testemunhado, ainda menino, no verso ungido de melancolia “nosotros, los de entonces, ya no somos los mismos”, ainda nos enfileiramos na versão moderna dos menestréis de antanho, bobos-da-corte, olhos místicos no amar, vividos em Al Di La, o mais além da música popular italiana, no seu ápice auriverde.

E por aí vai a caminhada. Os irreverentes Beatles. O efêmero e inesquecível Cazuza, o poeta do “beija-flor”, que reaviva Caetano “sem lenço nem documento”, quando era proibido cultuar a liberdade, em nome da Ordem e da pretensa Paz Interna. E Chico Buarque fazia profissão de fé no auto-exílio.

A pedra, a eterna Pedra engastada no tempo, a rocha nobre de Drummond de Andrade, inevitável aos olhos, para que os menestréis pulsem a essência da beleza na sensação de estar vivo.

Mais que nunca é preciso liberar o canto, propor a decantação de todas as mágoas. O essencial é o fato de cantar, o gesto do escriba, a lavratura. Isto feito, aos olhos do eventual espectador, tudo permite discussão estética. No mais, é o gosto de quem assiste, e este não se pode discutir. É uma questão de liberdade num mundo áspero, cíclico, factual.

É pertinente pressentir o Homem, em Fernando Pessoa, ortônimo e heterônimo, e “nunca conhecer quem não tivesse levado porrada”. Também estamos fartos de semideuses.

Eis que o olhar de Superman descobre a cara de Jacques Chirac desenhada pela fumaça atômica, no atol de Mururoa. Testes de armas nucleares. A humanidade recita a “Rosa de Hiroshima”, desta vez no idioma de Santa Joana D’Arc, a heroína de França.

Sim, os menestréis estão vivos. E bebem, timidamente, a loucura fratricida de conviver com as diferenças.

É destas ambivalências que nasce o canto da Eternidade.

– Publicado, originalmente, sob o título "Estarão vivos os menestréis?", na coletânea CAMINHADA LITERÁRIA, Porto Alegre, UBE/RS, 1997, p. 103:4. Revisado e ampliado.

– Do livro CONFESSIONÁRIO – Diálogos entre a Prosa e Poesia, 2006.

http://www.recantodasletras.com.br/cronicas/312193